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Como se sabe quantos ciclistas existem e quem são? Nos bastidores das contagens

Reportagem do Lisboa Para Pessoas. Publicado em https://lisboaparapessoas.pt/2022/01/13/contagens-ciclistas-lisboa-bastidores/ a 13 Janeiro 2022. Por Mário Rui André.

Para tomar decisões num território, são precisos dados. E Lisboa tem desde 2017 um registo das pessoas que usam a bicicleta na cidade: quem são, quantos são e como se comportam no espaço público. Será que este estudo vai ter continuação?

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

De lápis ou caneta na mão, folha noutra, olhos postos na ciclovia – e em tudo o que há em redor –, Nuno Pinhal e Maria Canellas tentam que nada lhes escape. Assim tem de ser. Já o tinham feito noutras vezes e essa prática dá-lhes a experiência que é precisa para, num cruzamento complicado como é o das ciclovias da Avenida da República e da Duque d’Ávila, analisar o elevado tráfego de ciclistas logo pelas primeiras horas do dia.

Nuno e Maria são parte de uma equipa de várias pessoas que, durante duas a três semanas de Outubro e organizados por turnos, estiveram a contar ciclistas manualmente. O objectivo é acompanhar a evolução do número de utilizadores da mobilidade suave na cidade de Lisboa e também perceber quem são essas pessoas e como se comportam no espaço público. Este trabalho é encomendado todos os anos desde 2017 pela Câmara Municipal de Lisboa ao CERIS, a unidade de investigação do Instituto Superior Técnico para a inovação e sustentabilidade na área da engenharia civil, da qual a investigadora Rosa Félix faz parte. É um trabalho – na perspectiva de Rosa – “muito importante para a gestão da mobilidade ciclável por parte de uma Câmara Municipal”, pois fornece dados ricos e relevantes aos decisores políticos. “Os romanos desde muito cedo perceberam que era importante não só conhecer o território, mas saber quantos eram e quem eram, para se ter uma boa governação. Daí os censos.”

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

O método científico

Apesar de aparentemente simples, a tarefa de Nuno e de Maria não se limita a estar sentados num sítio qualquer enquanto contam quem passa. Ao desgaste das horas passadas com a máxima atenção junta-se a necessidade de seguir um processo científico rigoroso, coordenado por Rosa. “É algo muito sério”, diz. “Não é só ir para a rua e contar ciclistas. Tem muito rigor e muita ciência.” 

Por toda a cidade foram definidos 66 pontos de observação, em locais onde existem ciclovias – com particular atenção aos cruzamentos – e em zonas onde estas estão previstas, o que pode permitir tirar ilações sobre a necessidade (ou não) de infraestrutura ciclável numa determinada artéria ou sobre, por exemplo, a urgência de reforçar a segurança de um ponto. Esta definição dos pontos de observação é feita em conjunto com a Câmara e os seus planos de expansão da rede ciclável.

Depois de localizados os pontos, mas antes de ir para o terreno, há também um trabalho de preparação fundamental. É preciso encontrar pessoas que se disponibilizem para fazer as contagens, entre quem já desempenhou essa tarefa no passado e tenha de novo vontade, e quem, através do passa-a-palavra, mostre interesse em fazê-lo pela primeira vez. É preciso dar formação aos novos “observadores”, organizar os turnos e definir quem fica com cada um dos 66 pontos de observação, em que dias da semana e em que horários – os menos experientes ficam com pontos menos complicados. É preciso garantir que, nas semanas das contagens, toda a equipa se sente apoiada e tem ajuda no que precisa.

A escolha do mês de Outubro não é por acaso, é considerado um mês de hábitos estabilizados, antes do Inverno mais instável. Os 66 pontos não são monitorizados diariamente ao longo das duas a três semanas. O calendário é preparado para permitir redundância e para que haja coerência de um ano para o outro; se determinado local foi avaliado num determinado dia da semana no ano seguinte as contagens serão feitas no mesmo dia. As contagens fazem-se de manhã e de tarde durante períodos de três horas, segmentados em blocos de 15 minutos, sendo que cada bloco corresponde ao preenchimento de dados numa folha. Existem ainda contagens à hora de almoço em alguns pontos. É muito intensivo para quem está a fazer as contagens – são seis horas no total diário; horas que são pagas, salienta Rosa Félix. É pedido aos “observadores” que encontrem conforto num banco ou numa esplanada, pois vão ser várias horas, e que sejam discretos. “Não estamos aqui para fazer parecer que há mais ciclistas”, reforça, explicando que as contagens devem ser feitas em blocos rigorosos de 15 minutos e nem mais um segundo só porque passaram mais duas pessoas de bicicleta.

Durante todo o horário de expediente, os “observadores” carregam consigo um molho de folhas onde anotam quantas pessoas passam, que percurso fazem – e outras características que sejam possíveis de aferir, como o sexo ou a faixa etária. Se forem estafetas, têm uma categoria própria, pois é um campo social que este trabalho também procura estudar. Anotam ainda em que tipo de bicicleta segue cada ciclista – se é simples, eléctrica, se tem cadeirinha de criança, se é uma dobrável, se é uma bicicleta de carga, etc. Mais que saber quantas pessoas pedalam, Rosa e a sua equipa procura saber como pedalam. E esta riqueza informativa só os olhos humanos conseguem contabilizar, refere a investigadora. Apesar de Lisboa contar desde o Verão com 34 contadores automáticos em diferentes ciclovias da cidade, estes “não conseguem ter a sensibilidade que uns olhos de uma pessoa tem e que permitem registar quem é aquela pessoa que vai em cima de uma bicicleta”.

A digitalização e o relatório

No final das semanas de contagens, vem o tratamento dos dados. Todas as contagens são assinaladas à mão e cada “observador” tem depois de digitalizar essa informação num documento partilhado online. Cada “observador” pode adoptar a sua estratégia de contagem, desde que o output seja o preenchimento das folhas de um modo que a própria pessoa entenda e resulte na inserção correcta de dados nesse documento partilhado, a partir do qual começa o trabalho de limpeza e tratamento dos dados. A folha de cálculo que resulta desse processo é uma base de dados com cerca de 2800 entradas e 40 variáveis, sobre a qual Rosa e a sua equipa terá de trabalhar. O tratamento, validação e análise dos dados prolonga-se durante cerca de dois meses, com o relatório final a estar pronto geralmente em Dezembro. É habitualmente um documento de várias páginas, com gráficos, algumas imagens e uma análise profunda sobre o que se passa na cidade, que segue para o departamento de mobilidade da Câmara de Lisboa, onde será lido e aprovado. Depois, poderá tornar-se público para consulta por todas as pessoas – um passo que, infelizmente, nem sempre é concretizado.

O último relatório de contagens disponível é o de Maio de 2021 – desde 2020 que este trabalho passou a ser feito duas vezes ao ano, sendo as contagens de Outubro as mais importantes e completas. De relatório para relatório, tem-se observado um crescimento da utilização da bicicleta na cidade; estima-se que de 2017 para 2020 esse aumento tenha sido de 138%. Mas em Outubro de 2021 houve uma estreia: no cruzamento do Campo Grande com a Cidade Universitária e a Avenida do Brasil foi precisa pela primeira vez uma equipa de quatro pessoas para dar conta de um fluxo de cerca de 400 pessoas por hora naquela intersecção.

De volta ao cruzamento, Nuno e Maria vão trocando alguma conversa, pois a prática de anos anteriores nas contagens já lhes permite este multitasking“A pior coisa que pode acontecer é encontrares amigos. Tive amigos a passarem por mim e nem os chamei”, refere Maria. É precisa concentração, apesar de tudo. “A malta está preocupada com a questão do rigor. Não estamos aqui a brincar. É mesmo importante estar atento aos fluxos, ou seja, que memorizes de onde o ciclista que está ali parado veio e vejas para onde vai, depois de o sinal verde abrir.” Em dupla, Nuno e Maria conseguem dividir tarefas: ela atenta nos fluxos, ele no perfil das pessoas.

“Ontem ia morrendo ali sozinho”, desabafa Nuno, que esteve num ponto na rotunda do Saldanha. “Nós vamos comunicando com a Rosa e ela vai reforçando as equipas quando é preciso”, complementa Maria. “Acho que é mais chato se estás a contabilizar um lugar onde não passa muita gente, mas aí também metes uns phones e um podcast.” Para Maria, este trabalho de contagens tem-lhe permitido também descobrir outras dinâmicas na cidade. Apesar de estar “habituada a andar de bicicleta todos os dias”, os locais por onde passa – Penha de França, Almirante de Reis, Graça – representam uma realidade distinta, por exemplo, deste cruzamento entre a Avenida da República e a Duque d’Ávila. “Tenho descoberto que há muito mais pessoas a usar a bicicleta para o trabalho do meio corporativo, que é uma coisa de que no dia-a-dia não me apercebia tanto. Ganhei também uma noção da quantidade de pessoas que usa bicicletas partilhadas.”

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