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Ter mais mulheres a pedalar é um sinal de que as ruas são seguras

Entrevista com Rosa Félix para o Público. Publicado em https://www.publico.pt/2021/09/05/local/noticia/mulheres-precisam-perder-medo-usar-bicicleta-cidade-1976291 a 5 Setembro 2021. Artigo por Abel Coentrão, fotos de Rui Gaudêncio.

Em Lisboa as mulheres já representam um quarto dos que pedalam no dia-a-dia, que é a proporção média europeia. Na Conferência Velo-City, que começa esta segunda-feira na FIL, especialistas de todo o mundo vão debater o que se pode fazer para as trazer, com as crianças, e os mais velhos, para a rua.

No debate entre grupos barricados nas redes sociais, inúmeros portugueses — entre eles muitos lisboetas ou vizinhos de concelhos limítrofes agastados com o “desperdício” de espaço público precioso com a construção de vias cicláveis — queixam-se de que nenhuma mulher, no seu perfeito juízo, usaria uma daquelas ciclovias. Dizem que nenhum pai responsável deixaria que um filho as usasse, e desfiam mil e uma preocupações com os mais velhos que, não podendo pedalar, ficam prejudicados por não se lhes poder levar um carro até à porta. Haverá boas razões para discordar destes argumentos, mas eles não deixam de ser reflexo de uma imagem bem presente: nas cidades em que a bicicleta foi atirada para um canto, quem pedala são essencialmente homens e em idade activa, os “heróis” capazes de enfrentar o trânsito automóvel. 

Em Lisboa haverá muitos lugares onde ainda é assim, mas há indícios claros de que esse retrato está, de facto, a mudar na capital portuguesa, que a partir de amanhã acolhe a maior conferência mundial sobre mobilidade em bicicleta, a Velo-City. E um dos indicadores mais importantes é o aumento da proporção de mulheres, que já são 25 em cada cem ciclistas contados nas ciclovias pelo laboratório de investigação U-Shift. Em 2017, eram 17%, assinala Rosa Félix, membro desta equipa do Instituto Superior Técnico​.

E por que são importantes as mulheres? Os estudos realizados em vários países referem que elas são quem mais importância dá às questões da segurança, nas opções de deslocação quotidiana, seja qual for o veículo que escolham. Por outro lado, a sua presença numa bicicleta é tanto mais notada quanto mais reticular for a rede de infra-estrutura segura existente, ligando espaços que fazem parte das suas rotinas diárias. E como por cá, entre casa e trabalho existe muitas vezes uma escola, e um supermercado, e…

Rui Gaudêncio

Da mesma forma que só um experimentado condutor de rally usaria o carro no dia-a-dia se lhe fosse disponibilizado um conjunto de ruas desconectadas entre si e perigosas, a “evaporação” da bicicleta das ruas portuguesas — nas quais foi, até à década de 60, um meio de transporte comum e disseminado entre as várias classes sociais, nota outro investigador nesta área, Bernardo Campos Pereira — radica também no desinteresse, ou na dificuldade, sentida por muitas cidades, de reequilibrar o predomínio dado entretanto ao veículo que fomos ensinados a desejar: o automóvel.

Numa capital como Lisboa o carro ocupava, antes da estratégia de mobilidade e de requalificação urbana posta em prática na última década, 60% do espaço público, e chegava a tomar 80%, nalguns pontos, lembra o presidente da EMEL, Luís Natal Marques. Sem corrigir esse desequilíbrio, comum em boa parte das cidades portuguesas, é impossível melhorar a rede de percursos pedonais, também eles negligenciados até há alguns anos, ou criar uma verdadeira rede de percursos cicláveis que permitam redistribuir as opções de mobilidade. 

Rui Gaudêncio

No Porto, cidade pioneira na construção de ciclovias que serviam a zona industrial e na própria Ponte da Arrábida (de onde a via ciclável desapareceu nos anos 90), os dados históricos recolhidos por Bernardo Campos Pereira dão conta de uma utilização dos velocípedes bem mais intensa do que a se verifica actualmente. Dirigente da Mubi, Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta, e Bicycle Mayor, Vera Diogo vai notando uma recuperação paulatina no número de utilizadores, à boleia de algumas obras recentes, mas nota que é preciso fazer muito mais para devolver às ruas essa diversidade que, segundo os estudos, são um sinal de uma cidade não apenas mais segura, mais “mais equitativa”.

“As mulheres, os idosos, as crianças, que seria fundamental que pudessem ir sozinhas ou pelo seu próprio pé para a escola, não podem continuar a percepcionar o espaço público como um lugar onde é arriscado estar”, assinala, considerando que a bicicleta, que usa diariamente, é simplesmente uma ferramenta para mudar a cidade. Pode parecer uma utopia, mas onde existem condições, os números são bem diferentes dos 0,4% ou 0,5% de viagens diárias a pedalar contadas no último inquérito à mobilidade nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, em 2017.

Rui Gaudêncio

O município mais amigo da bicicleta

Basta ir, por exemplo, à Murtosa, o município português mais amigo da bicicleta, segundo o Bike Friendly Index, de 2018, para perceber que os 17% de quota modal em velocípede não se faz à custa de heróis de roupa de licra e capacete enfrentando o trânsito, mas de gente comum, novos, velhos, e muitas mulheres, como Glória Evaristo, que o PÚBLICO encontrou por ali, aos 80 anos, pedalando pelos dias, em absoluta segurança.

Com ligações familiares a Pamplona, Bernardo Campos Pereira, ex-consultor do município de Lisboa, com o qual trabalhou no desenho da rede ciclável, nota como na cidade espanhola se vêem imensos idosos na rua, de bengala, andarilho ou em scooters adaptadas, que beneficiam da rede ciclável existente e da acalmia do tráfego. “Em Lisboa, quando deixam de poder usar o carro, muitos deixam de sair de casa”, lamenta. 

Cicle Diversity, a diversidade no uso da bicicleta, é precisamente o tema chapéu da conferência Velo-City, uma organização da Federação Europeia de Ciclistas (ECF) e do Município de Lisboa que durante quatro dias, junta na FIL, na capital, em mais de 50 mesas-redondas, duas centenas de especialistas, activistas, responsáveis técnicos e políticos. Gente que, em dezenas de países, está a estudar ou a tentar criar condições para o regresso da bicicleta às ruas e às opções de mobilidade das cidades e dos cidadãos, mas também a olhar, com muito interesse, para o incremento do turismo à boleia deste veículo em duas rodas sem motor, que segundo a UE valia em 2013 44 mil milhões de euros/ano, mais do que o turismo de cruzeiros (38 mil milhões). 

Para Luís Natal Marques, presidente da EMEL (empresa que tem a responsabilidade de organizar a conferência, em nome do município), o evento, que se realiza presencialmente e online, é uma oportunidade para partilhar boas práticas no desenho de cidades mais inclusivas, em resposta aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável e aos desafios climáticos que enfrentamos. E é também um momento de afirmação deste modo de transporte que, recorda, foi olhado com imensa desconfiança e crítica quando em Lisboa se instalaram as bicicletas partilhadas Gira à boleia de uma rede ciclável que dava os primeiros passos, também. O sistema, que continua em expansão, acaba de alcançar o redondo número de quatro milhões de viagens realizadas, em percursos cuja média se cifra nos dois quilómetros, revelou. 

O regresso da bicicleta ao dia-a-dia das cidades portuguesas é um sinal da mesma diversidade que Jane Jacobs, em 1961, considerava essencial para tornar a rua num lugar mais acolhedor para todos. Depois de décadas a fazer cidade para o automóvel — com impactos tremendos ao nível da sinistralidade, que é mais mortífera nas ruas que nas estradas portuguesas — vários factores, para além do da segurança, impelem um movimento global de inversão de marcha: a pressão populacional que já pôs mais de metade da população mundial a viver em áreas urbanas; a percepção de que a expansão contínua das cidades e seus subúrbios tem custos de infra-estruturação e manutenção difíceis de comportar pelas autoridades locais; e a noção dos impactos ambientais das nossas urbes (que gastam dois terços da energia consumida e emitem 70% dos gases com efeito de estufa), fizeram soar o alarme. 

Rui Gaudêncio

Menos 16 milhões de toneladas de CO2 

Retirar uma parte do tráfego automóvel do espaço urbano, melhorando as possibilidades de eficiência do transporte público e dos modos activos, tornou-se uma urgência. A UE conta em 800 mil milhões de euros anuais as externalidades negativas desta nossa dependência excessiva do veículo que se tornou dominante em meados do século XX, e que o urbanista Jaime Lerner considerava, já nos anos 70, ser “o cigarro das cidades”. E Rosa Félix recorda a forma como comportamentos naturais como fumar dentro de um espaço fechado se tornaram legal e socialmente não aceitáveis, para reflectir sobre a mobilidade urbana. “Ter um carro é, como fumar, uma opção individual, mas não podemos continuar a ignorar os impactos da sua utilização nos outros, na comunidade”, assinala. 

Foi aliás esta percepção do impacto da motorização excessiva o que levou os holandeses, nos anos 70 a sair à rua, em Amesterdão, para exigir ruas mais seguras. Depois de duas décadas a usar cada vez mais o carro e menos a bicicleta, parte da população reagira às crises petrolíferas da década voltando a usá-la na mobilidade quotidiana, mas ao contrário do que hoje muitos imaginam, ao ver imagens de cidades repletas de ciclovias e com pouco trânsito, o espaço público estava já muito formatado para o automóvel e as mortes de ciclistas sucediam-se.

Mais do que apenas uma qualquer propensão natural para pedalar, dada a orografia favorável do país, a história refere esta mobilização da sociedade civil, e a resposta, em consonância, dos decisores políticos locais e nacionais, como factores críticos para a transformação das cidades e da mobilidade urbana nos Países Baixos, país que, note-se, tem hoje, ainda, um rácio de carros por mil habitantes semelhante ao de Portugal.

Pôr mais gente a pedalar faz parte do guião para uma Europa mais Verde, mas os benefícios da bicicleta, que a UE contabiliza, actualmente, nuns módicos 150 mil milhões de euros anuais (três quartos da riqueza anual produzida em Portugal), vão muito para além das 16 milhões de toneladas de CO2 equivalente que, graças a elas, os europeus deixam de emitir.

O boom de utilização de bicicleta verificado em todo o mundo, com a pandemia de covid-19, acelerou as iniciativas nacionais de promoção do uso da bicicleta no quotidiano, em vários países europeus, e se, no plano político, Portugal não acompanhou, com o mesmo ritmo, esse movimento, no plano industrial, o sector da montagem de bicicletas e produção de componentes manteve a cabeça do pelotão enquanto maior produtor europeu, pelo segundo ano consecutivo, e aumentou as exportações, de 400 para 425 milhões. 

Rui Gaudêncio

Actualizando um título do PÚBLICO de 2019, ao primeiro produtor europeu de bicicletas só falta… pedalar… de novo. Quando apareceu, no século XIX, a bicicleta ajudou a emancipar as mulheres, que cedo perceberam que aquele novo meio de transporte não poderia ser exclusivo dos homens e, escândalo, passaram a usar as bloommers, umas calças largas, sob vestidos mais curtos, para poderem dar ao pedal mais à vontade. Agora, talvez lhes caiba, a elas, o papel de ajudar a emancipar a cidade.

Mas, mais de um século depois, nos cursos da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB), outra parceira da Velo-City, são muitas as mulheres, adultas, que aparecem para aprender a utilizar aquela máquina que, durante décadas, se transformou num brinquedo de meninos, explicou ao PÚBLICO recentemente o presidente desta organização, José Manuel Caetano. “As mulheres precisam de perder o medo de utilizar a bicicleta na rua”, insiste Vera Diogo. Atrás delas outros virão, e a cidade que daí resultar, acreditam, será melhor para todos, inclusive para aqueles que vão continuar a andar de carro.