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A ‘febre’ das bicicletas em Portugal

Procura por bicicletas disparou de forma inédita. Mais teletrabalho e novas rotinas vão transformar as deslocações diárias

Publicado no Expresso a 22 de Agosto 2020. Texto de Raquel Albuquerque. https://expresso.pt/sociedade/2020-08-22-Ha-uma-febre-das-bicicletas-em-Portugal.-Cicloficinas-ja-nem-ferias-podem-tirar

Foto Rui Duarte Silva /Expresso

As bicicletas velhas que estavam no fundo das arrecadações e garagens começaram a aparecer em catadupa nas cicloficinas em vários pontos do país logo nas duas primeiras semanas de maio. Os donos pediam pequenos milagres para as pôr novamente a circular. Com a venda de bicicletas online a disparar em abril, as lojas estavam a ficar vazias e as pesquisas por bicicletas em segunda mão no OLX duplicaram num mês, saltando para o topo das palavras mais procuradas, acima de ‘piscina’ ou ‘autocaravana’. Sem mãos a medir para dar resposta a todos os arranjos até setembro, algumas cicloficinas já decidiram nem fechar para férias.

“O pico de trabalho só acontecia em maio, quando as pessoas querem arranjar as bicicletas antes das férias. Este ano é inédito”, conta Rosa Félix, membro da Cicloficina dos Anjos e investigadora em mobilidade ciclável no Instituto Superior Técnico (IST). “As bicicletas novas estão esgotadas nas lojas. E, sem dúvida, este nível de procura poderá manter-se para setembro, com o regresso às aulas, que é uma altura em que as pessoas testam mudanças de hábitos e há um pico de utilização de bicicletas. Acredito que este ano possa ser maior.”

Durante o confinamento, milhares de pessoas encontraram na bicicleta uma escapatória: usaram-na para passeios ao final da tarde, depois de um dia de trabalho em casa, ou ao fim de semana e para exercício físico. É o que mostram os dados do contador de bicicletas da Avenida Duque de Ávila, em Lisboa: em abril voltaram a aparecer, mas menos às horas de ponta e mais ao fim de semana. Em maio foi batido o recorde do número de bicicletas por hora. E o boom que aconteceu em Lisboa, onde nos últimos meses foram criadas várias ciclovias, que também despertaram muitas críticas, repetiu-se em cidades como Paris, Milão, Atenas, Barcelona, Budapeste ou Nova Iorque.

PRODUÇÃO PARADA

As vendas dispararam nos últimos meses. O Continente teve a maior procura em cinco anos, com um aumento de 50%. No Auchan, as vendas subiram 19%, mas seriam de 50%, diz o hipermercado, “não fosse a falta de stock dos fornecedores nos últimos dois meses”. Só as bicicletas para crian ças cresceram 66%. Já na Decathlon, as bicicletas passaram a representar 30% do volume de negócios durante o confinamento, quando antes eram 10%. “Registamos igualmente uma elevada procura por capacetes, cadeados ou seguros”, afirma a loja de artigos de desporto ao Expresso.

Só que, enquanto a procura crescia, a produção estava parada. A RTE, a maior fábrica de bicicletas na Europa, localizada em Vila Nova de Gaia, produziu menos 200 mil unidades. “À medida que a Europa foi fechando, percebemos que iria ser inviável continuar a trabalhar. Fechámos a 13 de março e estivemos parados dois meses. Em abril, começámos a perceber que, apesar de as lojas estarem fechadas, havia grande procura online na Europa”, descreve Bruno Salgado, CEO da empresa, explicando que 95% da produção seguem para a Europa e só 5% ficam em Portugal. “Quando abrimos, as perspetivas de produção até ao final do ano já eram melhores do que tínhamos antes. É com muita naturalidade que as pessoas em vários países da Europa procuram bicicletas como alternativa aos transportes públicos.”

Mesmo em Portugal, onde a utilização de bicicleta como meio de transporte era inferior a 1% em Lisboa e Porto em 2017, está a criar-se espaço para uma mudança. Até porque quase um terço das pequenas deslocações, inferiores a cinco quilómetros, são feitas de carro na capital. “Há um potencial gigante de captação de viagens para outros modos de transporte, como a bicicleta”, aponta Rosa Félix.

Para o vereador da mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa, a meta desejável seria ter 10% do total de via gens na cidade feitas de bicicleta.
“Seria já uma grande transformação. Segundo as contas recentes, antes da pandemia teríamos uma percentagem de 3% ou 4%, mas há três anos era de quase zero. Desde a chegada das Gira [sistema de bicicletas partilhadas], a utilização tem vindo sempre a crescer e em pouco mais de um ano o número de viagens dobrou”, diz Miguel Gaspar ao Expresso. “Se uma pessoa a mais numa bicicleta for um carro a menos na cidade ou um lugar a mais nos transportes públicos, é positivo.” Sublinhando que o mês de setembro será “importante” devido ao aumento da mobilidade com o regresso às aulas, o vereador afirma que a autarquia está a criar soluções “para alargar o leque de opções” como alternativa ao uso do carro. Novas ciclovias, quase três mil novos lugares para bicicletas e a comparticipação em 50% na compra de bicicletas convencionais, elétricas e cargo bikes (adaptadas para o transporte de crianças) são algumas medidas. “Mantemos toda a aposta nos transportes públicos e foi reforçado o investimento na aquisição de material. vamos ter mais autocarros em setembro do que tínhamos no ano passado.”

Num mês, o programa de apoio à compra de bicicletas teve cerca de 200 pedidos e 50 seguiram para pagamento. Pedro Navarro, 52 anos, vive em Lisboa e vai juntar-se a essa lista. Há pouco tempo quis apostar numa bicicleta dobrável para substituir a que já usava para ir para o trabalho. Comprou uma das únicas duas que tinham acabado de chegar à loja. “Foi antes de saber do apoio, mas percebi que posso concorrer. A bicicleta custou €159 e deverei receber €80”, conta.

UM NOVO MODO DE VIDA

Os especialistas não têm dúvidas de que, por pouco que seja, os padrões de mobilidade vão mudar daqui para a frente. Não só porque o confinamento e o receio dos transportes públicos devido à pandemia gerou uma procura inédita pela bicicleta — que deverá refletir-se na taxa de utilização deste modo de transporte —, mas também porque o teletrabalho irá transformar a frequência e distância das deslocações diárias de casa para o emprego.

“As empresas não vão querer perder a possibilidade do teletrabalho, porque representa uma redução de custos e uma parte dos trabalhadores vai querer adotar essa hipótese”, defende Jorge Malheiros, geógrafo e professor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (ver entrevista). Já Filipe Moura, especialista em mobilidade e professor no IST, considera que “as organizações estão a voltar atrás e a ter uma grande parte dos trabalhadores em modo presencial”. Mas os dois investigadores admitem que a mobilidade irá mudar e que os efeitos da pandemia podem ser usados para alavancar a transição para uma mobilidade mais sustentável, reforçando o caminho que estava a ser feito desde a redução do preço dos passes em 2019.

“Claramente que pode ser uma alavanca e não um recuo. Mas é preciso aproveitar o momento”, frisa Filipe Moura. “As pessoas gostaram de não andar a correr de um lado para o outro e fazer as suas atividades a pé ou de bicicleta em distâncias curtas. Se o território estiver bem organizado e houver tudo o que é necessário em cinco ou dez quilómetros, as pessoas podem evitar o carro. Isso requer que as cidades se reorganizem a curto prazo.” É a “altura certa” para conquistar espaço na cidade com mais ciclovias, esplanadas e zonas pedonais, defende. “É o chamado urbanismo tático, com intervenções de baixo custo, que, se não funcionarem, podem ser retiradas ou melhoradas. Mas tudo isto tem de ser feito com muita transparência.”

Ainda assim, alerta o especialista, há grandes desafios pela frente, como a utilização dos transportes públicos durante a pandemia. “As soluções são difíceis. Mas há opções tecnológicas úteis e que não seriam complicadas de implementar, como a taxa de ocupação de cada transporte para informar as pessoas.” A consequência da redução da utilização dos transportes coletivos será um aumento do trânsito, e essa é a preocupação para setembro, com o regresso às aulas. “É um dos problemas da mobilidade urbana que tem de mudar. Não podemos continuar a ter mais de 80% das crianças a serem levadas de carro para a escola.”

Jorge Malheiros também vê no receio de andar de transportes públicos um desafio com consequências que vão para lá da mobilidade. “Mesmo quando a pandemia for ultrapassada, o risco prevalecerá na nossa memória.” E se, tal como o teletrabalho nunca será possível para algumas pessoas, também o uso de transportes ficar limitado a quem não tiver alternativa, o novo modo de vida póspandemia, alerta o professor, “poderá vir a agravar as desigualdades já existentes”.