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“Não basta colocar metas em papel e não fazer nada para atingi-las”

Entrevista a Rosa Félix, publicada na MOB Magazine edição de Abril 2022. Publicado em 8 Abril 2022, em https://www.mobmagazine.pt/entrevista/rosa-felix-nao-basta-colocar-metas-em-papel-e-nao-fazer-nada-para-atingi-las/ , por Cláudia Pinto.

Desloca-se diariamente de bicicleta e é nela que concentra a maior parte das investigações que realiza a nível profissional. Considerando que há muito trabalho a fazer para conquistar utilizadores de modos alternativos de mobilidade, Rosa Félix tem-se dedicado à compreensão dos comportamentos e das escolhas das pessoas no que respeita aos modos de transporte e aos seus percursos. É atualmente investigadora Pós-doc no laboratório U-Shift integrado no Instituto Superior Técnico em Lisboa.

Rosa Félix
Fotografia: Rodrigo Cabrita

Qual é o trabalho desenvolvido pelo laboratório U-Shift?
U-Shift integra uma equipa de investigadores liderado pelo professor Filipe Moura em que se debruçam em temas mais particulares dentro do Grupo de Trabalho de Transportes que é uma das linhas de investigação do CERIS (Civil Engineering Research and Innovation for Sustainability) que pertence ao Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georecursos do Instituto Superior Técnico (IST).
Como o Grupo de Transportes abrange um leque muito grande, quando nós começámos a trabalhar estes temas de peões, de mobilidade ativa, de mobilidade partilhada, de sistemas digitais, de segurança, não nos identificávamos bem com as temáticas trabalhadas. Decidimos então criar este laboratório que não tem uma formalidade institucional e que, neste momento, conta com dez alunos de doutoramento, dois de mestrado e vários investigadores já doutorados que colaboram no IST, como é o meu caso, e outros fora, no LNEC, no Metro de Lisboa e em outras instituições.
Temos muita experiência na realização de inquéritos, estudos de procura e estudos de impacto socioeconómico.

Acabam por fazer uma sinergia entre todos?
Sim. Trabalhamos em conjunto porque são os temas que nos unem. Por um lado, fazemos investigação no IST, mas também consultoria e projetos para fora porque há cada vez mais essa procura. O IST sempre foi uma referência na produção de estudos na sociedade, o que aumenta o interesse pelos estudos sobre a mobilidade ciclável circulável, a monitorização de redes, mobilidade, igualdade de acessibilidades, métodos partilhados de transportes, etc. Com este grupo, também nos posicionámos no mapa da engenharia civil da Universidade de Lisboa.

“Numa área metropolitana com quase três milhões de pessoas como é o caso de Lisboa, há cinco milhões de viagens por dia e imensas delas com grande potencial de serem realizadas em modos ativos”

Em que momento da vida percebeu que poderia ter interesse nesta área da mobilidade?
Eu tirei Engenharia do Território no IST, fiz um mestrado e, na altura, por acaso, comecei a deslocar-me de bicicleta pela cidade. Mas eu já me interessava muito por estes temas, tinha curiosidade de perceber como é que as pessoas pensam e como fazem escolhas de percursos. Por exemplo, se uma pessoa pergunta ao Google Maps, qual é o algoritmo que está por detrás do percurso escolhido? Em 2012, quando fiz uma tese nesta área, a cidade de Lisboa tinha imensas características diferentes e este foi um aspeto que me interessou investigar.
Na altura não havia uma rede ciclável como há agora e as pessoas evitavam percursos pouco seguros, escolhiam ruas muito mais secundárias e só com um sentido, preferiam ruas planas… O objetivo era perceber como é que as pessoas pensam e como fazem essas microdecisões. Depois, quando ingressei no doutoramento em sistemas de transportes, em 2014, continuei a interessar-me pela forma como as pessoas tomam as suas decisões nos modos de deslocação que escolhem no dia-a-dia e esta é uma das áreas fortes do U-Shift (o travel behaviour). O comportamento da escolha do modo de deslocação é um dos cores deste grupo de investigadores. Quase todas as pessoas que fazem investigação neste grupo tocam um pouco neste aspeto e até incluem crianças. Chegamos a estudar o que é que as crianças em idade escolar preferem mesmo quando são transportadas pelos pais e quando não têm uma escolha a dizer.

Quais as principais conclusões da sua tese de doutoramento?
O meu foco foi no sentido de tentar perceber quais são as barreiras e as necessidades que as pessoas têm para passar a usar a bicicleta mais vezes, principalmente em cidades em que há o que chamámos de baixa maturidade ciclável, ou seja, cidades com poucos utilizadores de bicicleta, com pouca infraestrutura, poucas ciclovias e em que não há grande cultura de usar a bicicleta e que são a maior parte das cidades do mundo. Se pensarmos em Copenhaga e em Amesterdão, não são referências, são outliers.  Interessava-me perceber como é que num ambiente em que não existem tantos impulsos, o que as levava as pessoas a tomar essas decisões, ou seja, quais são as vantagens e desvantagens relacionadas com a circulação em bicicleta e porque é que optam por esse modo.
Acabei por fazer inquéritos a mais de 1000 pessoas e dividi-as em ciclistas e não ciclistas para perceber porque é que as pessoas que não usam bicicleta não o fazem. Interessava-me saber porque é que aqueles que não utilizam bicicleta e que até querem fazê-lo porque é que não andam. São essas pessoas a quem as políticas públicas, em princípio, podem mobilizar. A segmentação e as técnicas de marketing também entram nestas questões e constituem uma das áreas de estudo do nosso grupo.
Conhecendo estes potenciais utilizadores e percebendo porque é que não usam a bicicleta, consegui hierarquizar essas necessidades [com base na pirâmide de Maslow] e concluir que, em primeiro lugar, há muitas pessoas que não sabem andar de bicicleta. Se houver programas nas escolas e até para adultos passarem a usar bicicleta, essa questão ficará resolvida para muita gente. Por outro lado, há quem tenha medo de andar de bicicleta na cidade, e essa é daquelas áreas que ainda precisa de ser muito estudada e temos alguns colegas no Instituto que trabalham os temas da segurança subjetiva e objetiva.

Rosa Félix
Fotografia: Rodrigo Cabrita

Além desse primeiro motivo, que outros foram apontados?
Seguem-se as razões mais práticas, ou seja, de pessoas que até gostariam de se deslocar de bicicleta, mas que têm noção que a cidade é muito perigosa ou que gostariam de levar a bicicleta nos transportes em qualquer horário e de uma forma prática. Muitas vezes até podem fazê-lo em teoria, mas chegam lá e não conseguem porque os transportes estão lotados. Ou ainda, pessoas que não têm onde guardar a bicicleta à noite, moram num prédio sem elevador e não têm nenhum parque coberto onde possam mantê-la em segurança. Estas são algumas das barreiras identificadas que podem ser eventualmente ultrapassadas com algumas políticas públicas ou até mesmo políticas das próprias empresas.
Tudo isto tem potencial para ser articulado e resolvido. Se queremos chegar às metas que estão definidas a nível nacional [de chegar a 4% das viagens serem feitas de bicicleta até 2025] temos de passar à ação. O Inquérito à Mobilidade (iMOB), em 2018, indicava que em Portugal apenas 0,5% das viagens eram feitas em bicicleta. Ainda estamos longe de atingir as metas.
Depois das questões mais práticas, entram os motivos pessoais, ou seja, pessoas que passam a usar a bicicleta por influência dos amigos, dos familiares ou até por questões de saúde e porque o médico sugere a prática de exercício físico. Nas questões do foro pessoal, as políticas públicas já não têm tanta relevância e impacto.
Na altura do doutoramento, foi também interessante perceber quando é que as pessoas começaram a usar mais a bicicleta e, até 2012, quem usava bicicleta, era quase o ativista que acreditava mesmo nesta opção. As pessoas reportaram que tinham uma consciência ambiental forte e isso impactava na sua opção modal. Antes de 2012, algumas pessoas que começaram a usar bicicleta em Lisboa tinham estudado em Erasmus em países onde tiveram essa experiência e trouxeram esse hábito para Portugal.
Entre 2013 e 2016, houve um período em que se começaram a fazer algumas ciclovias, mas ainda não existiam bicicletas partilhadas nem uma rede de ciclovia consolidada como hoje. Este foi também um período que coincidiu com a crise financeira, a subida do preço dos transportes e dos combustíveis em Portugal, o que levou a que algumas pessoas iniciassem a utilização da bicicleta.

Fale-nos um pouco mais dessas metas…
Esta métrica da Estratégia Nacional de Mobilidade Ativa Ciclável (ENAMC) indica que 4% das viagens em meios urbanos devem ser realizadas de bicicleta até 2025 e 10% em 2030. Atualmente, as deslocações a pé representam 18% na área metropolitana do Porto e 23% na área metropolitana de Lisboa.
Além da escolha modal, do travel behaviour, tentei perceber porque é que em Lisboa, a maior parte é feita por automóvel se 69% das viagens cobrem menos de cinco quilómetros? Porque é que não são feitas a pé ou em modos ativos?

O seu modo de deslocação preferencial é a bicicleta?
Na pandemia acabou por ser mais a pé porque fazia deslocações mais curtas. Gosto de andar a pé. Quando tenho de ir um pouco mais longe, também uso autocarro. Para o trabalho vou sempre de bicicleta, é mais cómodo e prático para mim até porque não tenho aquelas barreiras que identifiquei no meu doutoramento. Obviamente que poderia ser mais seguro, mas não é isso que me impede de realizar as minhas viagens.

RosaFelix 010
Fotografia: Rodrigo Cabrita

O U-Shift estudou o impacto da pandemia nestas opções de mobilidade?
Fizemos um estudo logo depois do começo da pandemia e realizámos inquéritos para saber se as pessoas passaram a usar mais a bicicleta nesta fase e tivemos dois tipos de respostas. Algumas pessoas que se deslocavam de bicicleta para o trabalho passaram a fazê-lo menos, mas também tivemos aquelas que compraram bicicleta nesse período porque tinham de fazer exercício ao final do dia. Mas isto realmente já não se vê. Houve ali uma fase entre maio e julho de 2020 com esta tendência, mas já não é a realidade atual.
Nós fazemos contagens de ciclistas todos os anos num projeto que desenvolvemos com a Câmara Municipal de Lisboa desde 2017 e observamos anualmente ciclistas nas horas de ponta em mais de 60 locais da cidade. Conseguimos perceber quais têm sido as dinâmicas e como já monitorizávamos o que acontecia antes da aposta nas ciclovias ou do aparecimento de estações Gira (bicicletas partilhadas) conseguimos fazer a comparação com o que aconteceu depois. Os efeitos são óbvios: de crescimentos de 10 vezes mais quando há estas infraestruturas e equipamentos. E também temos zonas de controlo em que não houve nenhuma novidade em termos de investimento em determinada infraestrutura e percebemos que o uso da bicicleta está a crescer em toda a cidade.Subscreva as nossas comunicações 

O crescimento de ciclistas tem acontecido anualmente?
Tem sido essa a realidade, com exceção do ano de 2018 para 2019. Depois, o ano de 2021 foi um dos anos com um maior crescimento como resultado do efeito das pessoas voltarem à atividade profissional e alterarem o seu modo de deslocação além do impacto das bicicletas partilhadas (porque houve um aumento do total de bicicletas nas redes Gira) e das bicicletas elétricas. Quando fazemos estes estudos de caracterização e de observação, não contabilizamos apenas. Analisamos todo o perfil: se é homem, mulher, se é novo, se tem alguma cadeira com criança, se tem uma bicicleta dobrável, se vai no passeio, onde vai virar, etc. Temos uma amostra bastante interessante e este ano registámos 62 mil ciclistas em Lisboa.

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Fotografia: Rodrigo Cabrita

“É preciso dar infraestruturas para as pessoas andarem de bicicleta, saber onde são prioritárias e quais as ligações com maior potencial para trazer ciclistas desde o automóvel privado”

As bicicletas elétricas transformaram-se numa moda?
Não só. Houve dois mecanismos à disposição nos últimos dois anos: o Fundo Ambiental que é um apoio a nível nacional e o Programa de Apoio à Aquisição de Bicicletas da Câmara Municipal de Lisboa, que funciona a nível local. Uma pessoa que se candidatasse a ambos os apoios podia receber até 700 euros para a compra de uma bicicleta elétrica. Acredito que estes apoios possam ter feito diferença para muitas pessoas e que esta política incentiva esta alteração de modo de deslocação.

Este é um tipo de política pública que faz sentido para mudar as tendências de mobilidade?
Não basta colocar metas em papel e não fazer nada para atingi-las. Em Londres, nos últimos dez anos, foram realizadas campanhas muito acérrimas que incluíam o apoio monetário para a compra de bicicletas ou acessórios, houve uma aposta em ciclovias e em campanhas de segurança. Com isto, foi possível chegar aos 2% de utilizadores em dez anos com um investimento de milhões de euros. E nós queremos chegar aos 4% em Portugal até 2025… há muito ainda a fazer.
No nosso país, destaco a redução do preço do passe social em 2019 como uma política que creio que pode ter mudado o hábito de deslocação de muitas pessoas. Depois, veio uma pandemia que veio alterar todo o sistema.

MOB MAG37

Na sua opinião, o que deveria mudar em Portugal para se atingirem as metas propostas?
Numa área metropolitana com quase três milhões de pessoas como é o caso de Lisboa, há cinco milhões de viagens por dia e imensas delas com grande potencial de serem realizadas em modos ativos. Em primeiro lugar, devem identificar-se quais são as viagens em que é preciso implementar medidas de segurança para se usar a bicicleta. Se Lisboa já tem alguma rede de ciclovias, fora um ou outro caso, outras cidades não têm. E para chegar a essas metas que se querem atingir não podemos olhar para duas ou três cidades. Temos de pensar nas viagens que são passíveis de ser transferidas para o transporte público, para modos ativos ou de forma multimodal.
Julgo que também se deve apostar em programas de educação nas escolas, nas camadas mais jovens, para que todas as crianças consigam equilibrar-se numa bicicleta no quarto ano. Muitas gerações não tiveram essa possibilidade, principalmente mulheres. Sempre houve muito aquela questão cultural de que a bicicleta é para os rapazes e as meninas não aprendiam. Se existirem esses programas nas escolas será um bom passo para que a bicicleta faça parte do leque de opções para as futuras gerações e não fique um modo excluído das alternativas que têm.
É preciso dotar as cidades de infraestruturas para as pessoas andarem de bicicleta, saber onde são prioritárias e quais as ligações com maior potencial de trazer ciclistas e retirar o automóvel privado. Julgo que seria importante ter um pacote de medidas que incluam questões práticas passíveis de ser ultrapassadas, como, por exemplo, levar a bicicleta nos meios de transporte com facilidade, poder guardar a bicicleta em edifícios, mudar alguma legislação do edificado que permita ter parqueamento, ou mesmo os municípios disponibilizarem um parqueamento seguro e fechado no espaço público.
Se queremos mesmo incentivar e fazer um choque de mobilidade terá de se atuar em várias frentes. Ter pessoas a andar a pé também seria muito importante se se deixasse de menosprezar o peão da forma como se faz hoje. O peão é sempre a última prioridade e é preciso começar a dignificá-lo. Estacionar em cima do passeio, por exemplo, é algo que ainda está na nossa mentalidade e ainda não vi campanhas sérias para fomentar a mudança como aconteceu com a reciclagem, por exemplo.

Pegando na questão do género, existem mais ciclistas homens do que mulheres?
Os dados que recolhemos em Lisboa indicam que sim. Há menos mulheres a usar a bicicleta muito devido à aversão ao risco.

No U-Shift investem na partilha de estudos com outras entidades nacionais e estrangeiras no sentido de criar parcerias e sinergias?
Neste momento, temos a decorrer dois projetos. Um deles, para a Transportes Metropolitanos de Lisboa, com o apoio da Universidade de Leeds, no Reino Unido, para identificar a rede prioritária ciclável a nível metropolitano. É um trabalho muito engraçado em que estou envolvida, que ainda está a decorrer e esperamos terminar até ao final deste ano. Temos ainda o “Street 4 All”, que arrancou no início deste ano e é um trabalho de investigação com a Universidade de Coimbra em que estudamos a alocação dinâmica do espaço público. Será que uma rua que tem dinâmicas diferentes a horas distintas do dia poderá ter usos específicos no espaço público? É preciso perceber quais as vias passíveis destas dinâmicas e como é que se pode fazer essa delimitação de espaço a nível tecnológico. O espaço nas cidades é limitado, mas se não está a ser otimizado em todas as alturas do dia, porque é que temos de ficar presos a esta lógica e não podemos alocá-lo de outras formas?

“Se queremos mesmo incentivar e fazer um choque de mobilidade tem de se atuar em várias frentes”

Rosa Félix
Fotografia: Rodrigo Cabrita
Perfil

Rosa Félix

É engenheira do Território e Investigadora na área da mobilidade urbana em bicicleta. É doutorada em Sistemas de Transportes pela Universidade de Lisboa – Instituto Superior Técnico, pelo programa MIT Portugal. Integrou a equipa de elaboração do Plano de Mobilidade Ciclável do Município de Loulé, e trabalhou em vários estudos de avaliação e monitorização da mobilidade ativa para a Câmara Municipal de Lisboa. Foi visiting scholar na Portland State University em 2017/18, onde desenvolveu competências a nível de programação e análise de dados geoespaciais aplicado a transportes e modos ativos. É atualmente investigadora Pós-doc no Instituto Superior Técnico (CERIS), e membro do laboratório U-Shift.