Diário de Notícias entrevista Filipe Moura sobre o efeito da infraestrutura ciclável no aumento de utilizadores de bicicleta.
Artigo publicado no Diário de Notícias: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/01-jun-2021/as-ciclovias-produzem-mais-utilizadores-de-bicicleta-13627577.html , a 01.06.2021, por Elsa Rodrigues.
Nos últimos tempos, a construção de ciclovias na capital acentuou-se com o objetivo de cumprir a promessa eleitoral do presidente da Câmara, Fernando Medina, de ter “pelo menos 200 quilómetros” de vias cicláveis até ao fim de 2021. Apesar das muitas vozes críticas contra faixas “de utilização reduzida”, os especialistas consideram que só se promove a utilização deste meio de transporte se, antes, se construírem as infraestruturas necessárias.
Apesar do último ano ter sido caracterizado por vários períodos de confinamento e dever geral de recolhimento, houve um meio de transporte que saiu mais vezes à rua – a bicicleta. Acompanhando uma tendência global, também em Portugal o aumento de vendas de bicicletas foi muito significativo, tendo chegado mesmo a crescer 500% entre maio e julho de 2020.
Menos bicicletas nas lojas e mais nas ruas e ciclovias de Lisboa. Segundo um estudo realizado pelo Instituto Superior Técnico (IST) para a Câmara Municipal de Lisboa, entre janeiro de 2020 e janeiro deste ano, a utilização de bicicletas na cidade aumentou cerca de 25%.
Para evitar a utilização de transportes públicos por receio de contágio por covid-19, para manter a boa forma física ou aproveitar o tempo ao ar livre, a bicicleta passou a fazer parte do dia-a-dia de muitos lisboetas desde o início da pandemia. Parte da motivação para aderir à bicicleta poderá estar também associada aos incentivos lançados pela autarquia para consertos e compra de bicicletas de diversas categorias.
Rumo aos 200 quilómetros
O aumento global do uso da bicicleta durante a pandemia foi ouro sobre azul numa das promessas eleitorais da campanha de Fernando Medina em 2017 – a expansão das ciclovias “pelo menos até 200 quilómetros”, até 2021. Um objetivo que ainda tem uma centena de quilómetros pela frente.
“Em 2016 existiam cerca de 53 quilómetros de ciclovias em Lisboa e neste momento duplicou, temos cerca de 105 quilómetros. A perspetiva é que até ao final deste ano se atinjam cerca de 200 quilómetros”, detalha Filipe Moura, professor do IST e coordenador do estudo que desde 2017 monitoriza e avalia o impacto do uso de bicicletas na capital.
Apesar do nível de utilização, a ciclovia desta artéria de Lisboa, construída em modelo pop-up tem sido uma das mais criticadas da capital.
As controversas pop-up
São consideradas ciclovias low cost e permitem uma construção rápida mesmo em troços longos, através da adaptação de um passeio ou supressão de uma faixa de rodagem. As que têm gerado mais descontentamento são as que implicam alocar uma de duas faixas de uma artéria já congestionada à circulação de bicicletas apenas com linhas pintadas no alcatrão e colocação de pilaretes de separação. Um modelo de construção que permite criar ciclovias de forma quase instantânea, com um investimento reduzido. O objetivo? Avaliar o nível de adesão/utilização da nova via, para eventualmente, a tornar “definitiva” com reforço da separação física entre as vias.
Mas, no caso da ciclovia da Almirante Reis, são muitos os residentes na zona descontentes. Questionam a segurança e legalidade da ciclovia e dirigiram queixas à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes. E defendem que o número reduzido de bicicletas na ciclovia não justifica o aumento do congestionamento do tráfego.
Mas os dados recolhidos até agora pela equipa do IST, apontam para o contrário. “Neste momento, eu diria que a mais controversa das ciclovias pop-up é a da Almirante Reis. E o que este nosso trabalho veio demonstrar é que entre antes da ciclovia e depois, a variação é de 140% de circulação ano para o outro”, explica Filipe Moura.
À espera dos ciclistas
Construir vias para bicicletas e esperar que os utilizadores apareçam depois? A ideia parece contraintuitiva, mas Filipe Moura garante que é muito comum no contexto do planeamento de novas infraestruturas de transportes e dá como exemplo a construção de uma estrada. Não se espera que os automóveis apareçam se a infraestrutura não estiver lá. E quando passar a estar, é normal existir um período mais ou menos longo (1 a 5 anos) até a nova estrada atingir os níveis de tráfego previstos. O mesmo acontece com as ciclovias. “Se se construir uma infraestrutura segura e conectada, então os utilizadores vão aparecer””, assegura.
Muitos críticos das ciclovias defendem que quem se quiser deslocar de bicicleta pode fazê-lo nos passeios mais largos, sem necessidade de vias específicas nem grandes alterações ao tráfego, mas Filipe Moura considera que essa opção “dá mau resultado em termos de segurança”.
“Um peão anda a uma velocidade de quatro quilómetros por hora, uma bicicleta anda facilmente a 15 ou 20 quilómetros por hora – cinco vezes mais. Portanto, a solução das bicicletas a andarem nos passeios não é boa. As crianças que andam devagarinho, em lazer, não vejo problema, mas deslocações de adultos ou adolescentes, a andar a 20 quilómetros por hora ou mais, com bicicletas de tração elétrica não me parece a solução”, descreve.
O perigo de circular de bicicleta num passeio estreito ou na faixa de rodagem numa via congestionada é também um dos fatores importantes a considerar quando se escolhe o local de implantação de uma nova via ciclável, segundo Miguel Barroso, projetista de ciclovias.
Questionado sobre a intensidade das vozes críticas contra o aumento das ciclovias em Lisboa nos últimos meses, o ativista a favor da bicicleta relembra que “não é uma situação inédita”. “Em todas as cidades do mundo onde se introduzem ciclovias, onde se tenta mudar o paradigma reinante, há sempre contestação”, explica. “Não foi diferente na Holanda, nem na Dinamarca”, países que hoje se destacam mundialmente pelo elevado nível de uso da bicicleta.
Distâncias longas e funcionais
Com mais de 100 quilómetros já a funcionar na capital, Miguel Barroso destaca a ciclovia que irá ser “a mais longa a passar pelo centro da cidade”, que terá cerca de 27 quilómetros quando estiver finalizada. “Quando estiverem concluídas a ciclovia do parque de campismo e o troço que está em obras da rua Afonso Costa, vai ser possível ir de Monsanto até ao Parque das Nações, atravessando o centro da cidade, sempre em ciclovia. Há, pelo meio, a zona do Bairro Azul, que não é ciclovia, mas é uma zona bastante calma, com velocidades baixas e de baixo tráfego, que não oferecem qualquer problema à circulação”, descreve.
A segunda ciclovia mais longa da cidade “é a ribeirinha que permite ir de Algés ao Parque das Nações, apesar de ter uma pequena interrupção no Terreiro do Paço, um sítio muito complexo de resolver”, em termos de circulação, acrescenta.
Já do ponto de vista funcional, Miguel Barroso destaca a ciclovia que liga Algés a Belém, que considera “muito boa”. “Tem excelentes dimensões e está muito bem marcada. Desse ponto de vista, é talvez um dos melhores exemplos”. Mas em termos utilitários, elege “o eixo central da avenida da República/Fontes Pereira de Melo” porque foi a ciclovia “que se revelou muito mais útil para muita gente – daí ser dos sítios onde as contagens do número de utilizadores são mais elevadas.”
Apesar de referir a importância destas três ciclovias no contexto da rede ciclável da cidade, enquanto projetista, Miguel Barroso reconhece que existem outras que também “são muito boas” e prevê-se que venham a ter elevados níveis de utilização. “Todas as ciclovias que são segregadas fisicamente são boas para as pessoas andarem e a maior parte delas sente-se bem nessas ciclovias.” Para que todos se possam sentir mais seguros com a presença mais assídua da bicicleta em todos os eixos de circulação, o ativista deixa um conselho, “não só para quem anda de bicicleta mas para todos: conhecerem as alterações feitas ao código da estrada nos últimos anos porque têm muitos pontos relacionados com a bicicleta”.
As sete colinas e a bicicleta
A malha ciclável está a alterar-se e sobretudo a crescer, mas há algo que não muda – a orografia da capital, um dos fatores apontados pelos críticos de quem imagina que Lisboa poderia tornar-se uma espécie de “Amesterdão da Europa da Sul”.
Faz sentido apostar na ciclovia e na bicicleta na cidade das sete colinas? Miguel Barroso considera que “não são um problema”. “Claro que, se pensarmos em quem vive no Castelo e trabalha no Bairro Alto, se calhar a bicicleta não será a alternativa que se aponta rapidamente” para as deslocações diárias, porque faria pouco sentido. Mas a bicicleta pode e deve ser usada nas zonas da cidades mais planas, até porque na maior do ano o clima é favorável.
Opinião semelhante tem Filipe Moura, que afirma que “75% das ruas de Lisboa têm menos de 5% de declive, o que é um limite aceitável para fazer deslocações em bicicleta. E cerca de metade têm menos de 3% de declive, que é praticamente plano”. E nas colinas? “Aí, será mais difícil, mas grande parte da atividade económica da cidade e dos postos de trabalho encontram-se em zonas perfeitamente acessíveis em bicicleta”, defende.
O objetivo do plano da autarquia nesta forma de micro mobilidade com um investimento de monta em ciclovias e na rede de bicicletas partilháveis GIRA, é colocar a maioria dos lisboetas e turistas a andar de bicicleta? Filipe Moura responde à provocação com a aproximação aos padrões do resto da Europa. “A ideia não é que as ciclovias de repente sejam utilizadas por todos os lisboetas ou pelos visitantes da cidade. A ideia é que se possa atingir um número de referência internacional, de 8 a 10% das viagens quotidianas serem feitas em bicicleta”, conclui.