Ninguém se entende em relação às novas ciclovias “pop-up” da cidade. A oposição diz que Medina é despesista e “atirou milhões à rua”, mas a Câmara explica que fez tudo com base em estudos – os que disponibiliza são incompletos. Condutores alertam que o trânsito já está “caótico” e vai piorar, e que o “muito baixo” número de bicicletas não justifica alterações em avenidas centrais. Do lado de quem pedala, há acusações de “intimidação”. E garantem: “Se construímos uma ciclovia, os ciclistas aparecem rapidamente. Ao fim de uns meses, esses números podem ser 10 ou 20 vezes mais”.
Publicado na Rádio Renascença a 4 Agosto 2020. Texto de Tiago Palma. Texo original em https://rr.sapo.pt/2020/08/04/pais/as-polemicas-ciclovias-de-lisboa-a-camara-quer-ser-verde-e-ecologica-a-forca/especial/202280/
A Câmara prometeu-o em junho último. Lisboa teria no prazo de três meses 16 novas ciclovias, sobretudo em artérias grandes e centrais (também habitualmente congestionadas) da cidade, da Avenida da Índia à 24 de Julho, da Avenida da Liberdade à Almirante Reis. Esta última avenida foi uma das primeiras a ser terminada – no caso, no sentido Sul/Norte. A ciclovia foi inicialmente projetada no sentido contrário, tendo a autarquia revertido a decisão, por forma a não prejudicar o acesso de ambulâncias ao Hospital de S. José.
O que lá se fez será em tudo idêntico às alterações propostas para as restantes artérias lisboetas: é uma ciclovia “pop-up”, ou seja, instantânea, de menor custo e de brevíssima conclusão, suprimindo-se no caso uma de duas faixas de rodagem automóvel existentes e substituindo-a, através de linhas brancas pintadas no alcatrão e pilaretes de separação, por uma via destinada a bicicletas.
A autarquia assegura à Renascença que o número de ciclistas que ali circula por hora, apesar dos tempos anormais de pandemia, duplicou com a criação da ciclovia, “em particular no período de tarde”.
Mas a transformação gerou muita controvérsia, levando até uma associação de moradores de Arroios a questionar a Agência Nacional de Segurança Rodoviária e o Instituto da Mobilidade e dos Transportes quanto às normas de segurança da obra e a sua legalidade. De acordo com os queixosos, a legalidade estará comprometida, uma vez que ciclistas e automobilistas circulam a uma distância inferior a 1,5 metros, além de que a utilização da ciclovia por parte dos veículos de emergência compromete a segurança dos próprios ciclistas.
Por sua vez, o Movimento Contra as Alterações de Trânsito denuncia o “caos” que está a ser gerado no tráfego pela supressão de uma via, acusando a Câmara de Lisboa de não ter auscultado os condutores, tal como não ouviu moradores e comerciantes aquando da decisão de avançar para esta mudança que está contemplada na proposta da Zona de Emissões Reduzidas (ZER) Avenidas/Baixa-Chiado da autarquia e que pretende retirar automóveis do centro da cidade.
À Renascença, Paula Fidalgo, que faz parte deste movimento, garante que não se opõe à criação de novas ciclovias, mas explica que “o número de utilizadores de bicicletas é ainda tão baixo, mas tão baixo, que não há justificação para se estar a transtornar desta maneira o trânsito, a prejudicar a liberdade de circulação dos restantes cidadãos e a prejudicar a circulação dos transportes públicos”.
“O que não gostamos de ver, enquanto cidadãos, e sabendo que estas obras são feitas uma parte com dinheiros públicos e outra parte com fundos da União Europeia, é a má aplicação do dinheiro em ciclovias mal colocadas, nomeadamente em locais que têm já por si poucas faixas de rodagem. Isso não vemos com bons olhos. Numa cidade europeia do séc. XXI, ter uma faixa de rodagem com duas vias de trânsito em cada lado não é muito”, critica.
“Má aplicação do dinheiro” e ausência de estudos
Ainda segundo Paula Fidalgo, o tráfego congestionado não é propriamente recente ou um exclusivo da Almirante Reis. “Hoje, para ir do Areeiro para Alvalade, um trajeto que antes, de carro, me levaria cinco, 10 minutos, neste momento, com as obras que esta autarquia fez, posso demorar 40 minutos. Para quem tem de se deslocar, é o caos cada vez maior, de ano para ano. À velocidade a que são introduzidas ciclovias e supressão de faixas, é quase semana a semana que há alterações para pior.”
O dedo acusatório do Movimento Contra as Alterações de Trânsito volta a apontar à Câmara. E questionam: vai a situação agravar-se em setembro, “com o regresso ao trabalho das pessoas que têm estado em ‘lay-off’, com o regresso às aulas, com o retomar daquilo que será a normalidade possível no pós-covid”? Paula responde, acusando uma vez mais: “Segundo os próprios números da Câmara de Lisboa, temos até agora somente 40% do tráfego que tínhamos [até à pandemia] nestas artérias. Portanto, em setembro a percentagem vai ser diferente. Suprimir faixas em sítios já por si muito, muito utilizados pelo trânsito, e com problemas na fluidez desse mesmo trânsito não faz sentido”.
O investimento da Câmara de Lisboa em ciclovias (mas igualmente no serviço de bicicletas partilhadas, o “Gira”, em apoios à compra de bicicletas novas ou nos estacionamentos de rua tipo “sheffield” para estas) tem vindo a ser considerável.
Segundo o BASE, o portal de consulta de contratos públicos, e analisando apenas os anos de 2019 e de 2020, verifica-se que a autarquia adjudicou – tendo quase sempre a EMEL como adjudicante -, quer por ajuste direto quer por concurso público, diversos contratos, a curto e longo prazo, direta ou parcialmente relacionados com estas novas vias para bicicletas. Contudo, duas empresas garantem a maioria dos contratos celebrados: Trafiurbe e Plenavia.
À empresa Trafiurbe, por exemplo, adjudicaram-se duas empreitadas, uma em maio de 2019 e outra um ano depois, num valor global de 204 mil euros – também àquela, em fevereiro de 2020, foi adjudicada, no valor de 74.500 euros, a aquisição e instalação de suportes de bicicletas do tipo “sheffield” e balizadores, “de forma faseada”, na cidade de Lisboa. Por sua vez, à empresa Plenavia, no período compreendido entre maio de 2019 e fevereiro de 2020, foram adjudicados dois contratos no valor total de 415 mil euros referentes a trabalhos em ciclovias – nomeadamente “trabalhos de sinalização”.
Outros contratos há no portal BASE, também nestes últimos dois anos, adjudicados a empresas como a Hipólito Bettencourt, a Studio Noronha Feio ou a Nadia Sinalização, seja para “execução de ciclovias”, seja para “desenvolvimento e consolidação de projetos” ou “instalação de balizadores flexíveis em poliuretano”. A totalidade do investimento supera, desta feita, o valor de 58 mil euros.
A oposição na Câmara de Lisboa, no caso a do vereador João Gonçalves Pereira, do CDS-PP, critica os “milhões” investidos pelo executivo de Medina ao longo do tempo, sobretudo porque, lembra à Renascença, “a Câmara está a contruir ciclovias sem qualquer base”.
“[A execução de ciclovias] é uma decisão apressada só para cumprir um determinado calendário eleitoral. Não tenho nada contra a rede ciclável. Queremos ter ciclovias, queremos ter bicicletas a circular. Mas a transição tem de ser equilibrada e, sobretudo, sustentada em estudos. Recentemente, e relativamente a sete das novas ciclovias, pedimos os estudos – estudos impacto no tráfego, estudos de impacto na economia, estudos de impacto social – e não existem”.
O vereador centrista diz que o executivo camarário “tem uma lógica de imposição de um determinado modo de mobilidade da cidade”, uma lógica “experimentalista” que significa “mais trânsito” e, por conseguinte, “mais poluição”.
“O trânsito significa atrasos nos trajetos das pessoas, seja para o trabalho, para as compras, para ir buscar os filhos. Isto prejudica a qualidade de vida. Há aqui um exagero. São decisões erradas na forma e no tempo, consumindo recursos públicos que são necessários para outras áreas. Podem até ser revertidas, mas se as reverterem é dinheiro que foi atirado à rua”, considera.
Autarquia diz que tem “meses” de estudos, mas fornece dados omissos à Renascença
O vereador Miguel Gaspar refuta as acusações de despesismo vindas da oposição e de ausência de estudos prévios de impactos no trânsito e no comércio. À Renascença, o vereador da Mobilidade da Câmara (PS) relembra que a criação de 200 quilómetros de uma rede para utilização de bicicletas “fazia parte do nosso compromisso eleitoral”, garantindo, a propósito do surgimento de mais e mais ciclovias, que “ninguém constrói uma ponte só por ver muita gente a nadar no rio”: há procura, garante.
“Este projeto [de novas ciclovias ‘pop-up’], fazê-lo ao ritmo a que o estamos a fazer, é possível porque temos meses, em alguns casos são mesmo anos, de reflexão sobre os corredores [de bicicletas] – se deve estar do lado esquerdo, do direito, se deve ir mais ao centro –, temos equipas técnicas internas do município que têm vindo a trabalhar nestas áreas, temos estudos prévios. As ciclovias são ali colocadas porque a Câmara sabe, e isso está demonstrado, que ao criar-se uma ciclovia muito rapidamente os ciclistas convergem para lá e começam a adotá-la”, explica o vereador com o pelouro da Mobilidade.
De entre os estudos citados por Miguel Gaspar, a Câmara de Lisboa tem um que é atualizado anualmente, desde 2016 pelo Instituto Superior Técnico, contabilizando o número de utilizadores por hora em 60 das ciclovias municipais.
Os resultados, diz o vereador, são encorajadores – e sustentam o investimento da autarquia.
“O que o Instituto Superior Técnico está a fazer para nós, ou que nos ajuda a fazer, é perceber qual é que é o fluxo de bicicletas em ciclovias já construídas. Por exemplo, em maio batemos o recorde de bicicletas por hora na Avenida da República. Na Almirante Reis posso dizer que 15 dias após a abertura da ciclovia já tínhamos duplicado as bicicletas que lá passavam. Portanto, sim, a existência de ciclovias vai induzir à adoção da bicicleta. E se dúvidas houvesse de que as pessoas estão mesmo à procura desta forma de transporte, basta ouvir relatos de prateleiras vazias em lojas de bicicletas: existe uma grande procura”, refere.
Logo após a entrevista com o vereador da Mobilidade, a Renascença solicitou à Câmara de Lisboa acesso aos estudos referidos por Miguel Gaspar, nomeadamente o que foi elaborado pelo Instituto Superior Técnico em 60 ciclovias.
Em resposta, o gabinete do vereador fornece um gráfico reduzido a sete avenidas (5 de Outubro, Morais Soares, Almirante Reis, Fontes Pereira de Melo, Duque de Ávila, Campo Pequeno e República) num período que abrangia os anos de 2016, 2017 e 2018.
A Câmara não acedeu ao pedido da Renascença para consultar o estudo na sua totalidade, que contempla 60 artérias com ciclovias e abarca o período entre 2016 e 2020. O gráfico enviado, além de ter apenas sete ciclovias, apresenta inconsistências e lacunas: não permite identificar, por exemplo, o número de ciclistas que circulam na ciclovia em dado momento e o período em que por lá circulam (se por hora, dia, semana ou mês); e no somatório de algumas avenidas (Fontes Pereira de Melo, Duque de Ávila, Campo Pequeno e República) é identificado um crescimento de “1.411%”, um número questionável do ponto de vista estatístico.
O caso da Almirante Reis. “Como é que uma ambulância passa com ciclistas na ciclovia?”
De volta à polémica da Almirante Reis, oposição e Movimento Contra as Alterações de Trânsito criticam um “bom exemplo de uma má política”, com o vereador centrista João Gonçalves Pereira a garantir que “ao mexermos em determinados eixos, em vias que são centrais em termos de circulação, a determinada altura poderemos ter uma cidade completamente paralisada – e o risco de isso acontecer é grande”.
Paula Fidalgo denuncia outro problema: é que a Almirante Reis é percorrida diariamente por viaturas de emergência, “quer polícia, quer bombeiros, quer, sobretudo, ambulâncias que se dirigem para os hospitais da zona” – o Hospital de S. José, o Hospital dos Capuchos e o Hospital D. Estefânia. E questiona: “Imagine-se o que é uma ambulância, com uma criança em situação de risco, a dirigir-se ao D. Estefânia? Como é que essa ambulância vai passar se tiver um ou dois ciclistas na ciclovia e trânsito totalmente obstruído na outra faixa?”
Miguel Gaspar rejeita que exista alguma dificuldade. Pelo contrário, o vereador assegura que “as condições para os veículos de emergência são melhores do que aquelas que existiam”.
“Não, [a Almirante Reis] não está condicionada de todo. As ambulâncias, por exemplo, em caso de emergência, circulam na ciclovia. O código da estrada permite aos veículos de emergência fazê-lo. Vamos ser claros: mesmo uma ambulância a subir, continuamente, a 20 ou 30 km/h – o que é devagar –, fá-lo mais depressa do que o fazia no passado, com filas compactas de tráfego e a andar a ‘dançar’ entre os carros. Neste momento, as condições são melhores”, explica.
Paula Fidalgo refuta a explicação camarária. “Sim, é verdade que as ambulâncias circulam como alternativa pela ciclovia. Mas havendo um ou dois ciclistas, nós sabemos que, e de acordo com o código da estrada, a ambulância já não segue por lá, não poderá nunca colocar em risco os outros utilizadores da via, seja essa uma via de trânsito normal, seja uma via exclusiva de ciclistas. E vai ter que mudar para a faixa de rodagem ao lado. Neste momento, como há muito pouco trânsito, isso ainda vai sendo possível. A partir de setembro, outubro, já não vai ser de todo.”
Novamente o vereador da Mobilidade assegura que não haverá risco para ciclistas, até porque, diz, a Câmara a Lisboa “confia que os condutores de ambulância o fazem compreendendo o ambiente que está à sua volta”. “Atropelamentos? Estou certo de que isso não acontecerá. Os motoristas são profissionais e adaptam-se às condições”, rebate
Investigadora diz que mais ciclovias atrairão mais ciclistas. Segurança preocupa: cinco atropelamentos e uma morte
A criação de cada vez mais ciclovias trouxe segurança aos utilizadores de bicicletas. E atrai outros, novos. A garantia é deixada à Renascença por Rosa Félix, ciclista urbana e investigadora do U-Shift, o laboratório de investigação em mobilidade do Instituto Superior Técnico.
“Esta rede de ciclovias realmente traz benefícios. Em questões de segurança é uma diferença enorme para quem já utilizava a bicicleta nesses eixos. E também convida aquelas pessoas que são potencias utilizadoras de bicicletas, e que ainda não tinham experimentado, a finalmente, e garantindo essas condições de segurança, tentarem fazer esses percursos. Não havendo esse ‘convite’, não havendo essa infraestrutura de segurança, aí provavelmente não o fariam”, explica.
Esta certeza da investigadora do Técnico é partilhada pela Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi). Pedro Sanches, membro da MUBi, garante que “ao criarem-se este tipo de infraestruturas as pessoas aparecem”, embora o projeto deva ser visto “numa perspetiva de médio-longo prazo”. “Também não é espectável que se hoje for criada uma ciclovia em dois dias já estejam a passar milhares de pessoas nessa ciclovia”, esclarece.
Quanto à segurança, embora a veja “crescente” agora que há ciclovias, Pedro Sanches lembra que há muito por fazer, nomeadamente quanto às interseções, “em que o local para os ciclistas virarem ou aguardarem a abertura dos semáforos não está claramente indicado”, resultando em acidentes graves. Igualmente urgente, defende, é reduzir a velocidade no centro da cidade.
“Existem muitas ruas e artérias na cidade de Lisboa onde a velocidade tem efetivamente que ser reduzida para evitarmos fatalidades como a que agora aconteceu [em 10 de julho] na zona do Campo Grande. Estamos a falar de uma avenida, no centro de Lisboa, que tem uma série de vias em cada sentido e onde a velocidade permitida são 50 km/h – mas onde, na prática, o que se pratica é muito superior. E quem diz o Campo Grande, diz várias outras avenidas dentro da cidade”, explica.
O caso a que a MUBi se refere é o da morte da jovem basquetebolista do Sporting Clube de Portugal, Ana Oliveira, de 16 anos, que faleceu na sequência de uma colisão, na passadeira, entre a bicicleta onde seguia e um automóvel que não respeitou o sinal vermelho
Entre 1 janeiro de 2020 e 31 de julho, segundo números enviados à Renascença pela Polícia de Segurança Pública (PSP), “foram registadas 43 ocorrências envolvendo condutores de velocípedes”. “Destes, em 35 resultaram vítimas, duas em estado grave [Ana Oliveira acabaria por falecer já no hospital]. Das ocorrências com vítimas, cinco foram atropelamentos”, diz também a PSP.
“A PSP tem dedicado atenção a esta matéria [acidentes com ciclistas], também por força do aumento de tráfego deste tipo de veículos que, embora desejável por questões ambientais e de dinamismo, tem implicações ao nível dos riscos de convivência no espaço urbano com os demais veículos e com os peões, porquanto todos ainda se encontram a aprender a lidar com esta nova realidade”, refere a mesma força de segurança.
Rosa Félix vê em “qualquer morte ou atropelamento um fator de preocupação”. “E daí a política de se estar a criar mais segurança, mais condições de segurança para que isso não aconteça. Por outro lado, é normal que haja mais ocorrências por haver também mais ciclistas. É uma realidade que há 10 anos não existia. Mas é preciso minimizar ao máximo tais ocorrências – e isso só se consegue com condições de segurança nas ciclovias”, explica.
Mas o crescente número de ciclistas não é a explicação, ou primeira explicação, para haver mais acidentes. A investigadora do Instituto Superior Técnico fala também da falta de “civismo” de muitos automobilistas. “Se for de bicicleta e for ultrapassada por um automóvel, aquilo não é bom. Passar a uma distância de menos de um metro e meio é um susto que pode ser irreparável – e aquela pessoa não volta a sentar-se em cima de uma bicicleta. É preciso compreender que é importante adquirir-se determinados comportamentos ao volante.”
Rosa Félix denuncia que tem “verificado uma maior clivagem” entre automobilistas e ciclistas, “tal como noutras alturas se verificou uma clivagem em relação aos peões”.
“Isto não é de todo saudável. É necessária uma estratégia de comunicação que faça com que as pessoas, mesmo as que são mais céticas, entendam que uma rede clicável vai trazer melhorias para a cidade. E é importante compreender que há um diferencial muito grande entre quem vai a pé ou de bicicleta e quem leva um veículo com uma tonelada, a uma velocidade muito maior. É necessário reduzir a velocidade. Um sinal não basta. Isso só se consegue com barreiras físicas, é necessário um estreitamento de vias, é necessária também a diminuição de raios de curvatura, é necessário garantir mais visibilidade nas interceções”, apela.
“Somos intimidados por automobilistas. Não estão a favor das ciclovias e descarregam toda esta frustração nas bicicletas”
Por um bom ambiente… o ambiente é agora “mau”, refere Pedro Sanches, da MUBi. “Não lhe queria chamar ‘guerrilha’, mas nota-se que estas alterações todas [ciclovias] não têm agradado a muita gente. No dia-a-dia vamos vendo comportamentos que não são os mais adequados para com quem se desloca de bicicleta. Ainda há muita animosidade. Há associados [da MUBi] que sofreram abusos, manobras mais propositadas só para intimidar. Não estão a favor das ciclovias e estão um pouco a descarregar toda esta frustração em quem se desloca de bicicleta”, denuncia.
Na autarquia, vereador da Mobilidade e oposição admitem que há uma “crispação” entre automobilistas e ciclistas. Só discordam é quanto às causas. Por sua vez, o Movimento Contra as Alterações de Trânsito diz sentir uma “tristeza muito grande” por esta situação ser reduzida ao conflito entre quem anda de carro e aqueles que pedalam.
“Esta ilusão de que é um mero conflito tem interessado à autarquia. Os utilizadores de bicicletas têm estado a ser instrumentalizados pela Câmara de Lisboa, para assim justificar esta sua política de querer ser ‘verde’ e ecológica à força”, acusa Paula Fidalgo. “Foi a própria Câmara que entrou em guerra, não apenas com os automobilistas, mas com os cidadãos. Este falso conflito é um bode expiatório que interessa à Câmara, para justificar um pouco a ausência total de investimento ao longo de décadas em melhores vias de circulação automóvel, para justificar também o desinvestimento nos transportes públicos. Na verdade, a grande guerra é esta.”
O vereador João Gonçalves Pereira, que preside igualmente a um clube de cicloturismo na cidade de Lisboa – “sou, portanto, insuspeito” -, diz que a autarquia liderada por Fernando Medina, “dogmaticamente”, está a “tentar impor um determinado modo de mobilidade às famílias”.
“Tenho quatro filhos. É impossível ir deixar os meus filhos à escola numa bicicleta. Cada caso é um caso. E deve haver respeito pelas diferentes situações, tentando-se, claro, criar condições para a cidade ir evoluindo na rede ciclável. O que não pode é ser à bruta! Esse ‘à bruta’ é que coloca lisboetas contra lisboetas – que é uma coisa que não faz sentido absolutamente nenhum.”
A Câmara de Lisboa rebate as críticas de que é alvo. E o vereador da Mobilidade endurece o discurso: “O que não estamos é disponíveis para que que nada aconteça. Muitos preferem continuar a discutir para, depois, nada fazer. Sistematicamente, há pessoas críticas dos projetos que nós fazemos. Pedem um investimento na mobilidade sustentável, ‘mas’ – e o problema é sempre o ‘mas’, porque o ‘mas’ é quando nós passamos dos princípios para o concreto. Se prometemos que mudaríamos a cidade de Lisboa, mudaremos a cidade”.
Admitindo a existência de “conflitos”, o vereador pede “serenidade” e, acima de tudo, “coerência”.
“A cidade de Lisboa tem mais de 1.400 quilómetros de rede rodoviária. E nós só estamos a falar de criar, tranquilamente, sem virar o paradigma [da mobilidade] ao contrário num dia, 200 quilómetros de rede ciclável, fazer um caminho onde haja menos dependência do automóvel na cidade e, principalmente, dar segurança a quem hoje sente não a ter para usar bicicleta. Do ponto de vista das convicções, que acho que é isso o mais importante, nós prometemos aos nossos filhos que em 2030 lhes entregávamos uma cidade melhor. E é isso que estamos a fazer”, conclui.
Câmara diz que “a maioria das pessoas está satisfeita”, mas pode voltar atrás: “Temos a humildade de ouvir e corrigir”
Havendo, no presente, um aumento de tráfego em algumas artérias, será realmente esta uma cidade menos poluída? Francisco Ferreira, da associação ambientalista ZERO, e Rosa Félix, que há já oito anos estuda a mobilidade ciclável, asseguram que sim. Ainda que a seu devido tempo.
“Sim, as ciclovias acabam por retirar, em muitos casos, faixas de rodagem aos veículos. Isso pode levar a algum congestionamento. Mas ao longo do tempo os utilizadores do automóvel percebem que têm que evitar aqueles locais, porque são zonas de maior congestionamento, e há efetivamente a redução de tráfego”, sustenta Francisco Ferreira. Com ou sem tráfego, a melhoria da qualidade do ar, assegura, é quase imediata.
“Mesmo que haja, ou possa haver, em determinadas alturas um ligeiro agravamento [do tráfego], o poluente que está em causa aqui – e que ultrapassa as concentrações permitidas na legislação – é o dióxido de azoto. Ora, ele tem até a ver mais com a circulação em velocidade do que com os veículos parados”, explica o ambientalista à Renascença.
O transporte rodoviário representa atualmente, em Portugal, 1/4 das emissões de gases com efeito de estufa, que estão na base das alterações climáticas. Francisco Ferreira não tem dúvidas: é urgente retirar veículos da cidade de Lisboa. Como? “As políticas adotadas em termos de mobilidade sustentável em várias cidades da Europa apontam para uma mistura de duas componentes: uma componente de incentivo e uma de dissuasão, de penalização – que são fundamentais. Se, por um lado, eu tenho que garantir e promover oferta, nomeadamente de ciclovias, por outro lado eu tenho que penalizar o uso do carro, nomeadamente através das tarifas de estacionamento, através de zonas de emissões reduzidas – onde só circulem bicicletas e, eventualmente, veículos elétricos.”
De volta a Rosa Félix e ao Técnico: a investigadora rejeita o aumento do congestionamento. E explica: “Se nós construímos uma infraestrutura, uma ciclovia, os ciclistas provavelmente aparecerão e aparecerão rapidamente. Os estudos que nós fazemos [no Instituto Superior Técnico] demonstram que após se implementar uma ciclovia os números disparam. Passado uns meses, esses números podem ser 10 vezes mais ou 20 vezes mais. Muito provavelmente, as pessoas que estavam a utilizar automóvel e transportes públicos, poderão usar a bicicleta. Portanto, em teoria, não haverá um congestionamento. Sim, não é imediato, mas daqui a 10 anos trará benefícios enormes em termos de saúde pública, de poluição do ar. Isso também está estudado”.
O vereador da Mobilidade acompanha o raciocínio de Rosa Félix, embora salvaguarde que “há quem não se veja” a utilizar a ciclovia. “A cidade durante décadas foi tomada por carros. Estamos à procura de um equilíbrio. Sendo certo que a cidade é, e continuará a ser, acessível por automóvel. Mas criámos uma alternativa que não existia. E a verdade é que se mais pessoas andarem [de bicicleta], mais espaço sobra para outros meios, seja o automóvel, seja o transporte público. Na verdade, é uma solução em que todos ganham”, assegura Miguel Gaspar.
Paula Fidalgo não acredita que ganhe. E o Movimento Contra as Alterações de Trânsito deixa um apelo ao vereador: “Gostaríamos que, em relação àquilo que já está implementado, a Câmara mostrasse alguma flexibilidade para ouvir e para fazer as devidas alterações. Já em relação àquilo que pretende efetuar no futuro, que faça essa mesma coisa, que, antes de efetuar a obra, ausculte, aceite as reuniões que as associações tentam marcar”.
Miguel Gaspar insiste que há uma “maioria de pessoas satisfeitas” com o que está implementado (e vai ainda ser) quanto às novas ciclovias, até porque, diz, “no futuro, no médio e longo prazo, lhes traz mais qualidade de vida”. Mas admite, ou não, a Camará de Lisboa recuar se se comprovar que o investimento foi prejudicial em algumas artérias? Admite, garante Miguel Gaspar.
“Percebemos que são transformações nem sempre fáceis. E temos a humildade de ouvir. Se intervirmos numa rua — e as nossas não são necessariamente as melhores –, há que ter a humildade de corrigir se tivermos que corrigir. Mas estamos convictos do caminho, de que a cidade de Lisboa deve ser mais ‘verde’, mais virada para as pessoas.”