Entrevista com Rosa Félix. Publicado na Mensagem, em https://amensagem.pt/2023/09/06/laterais-avenida-da-liberdade-obras-ciclovia-mobilidade/ a 06.09.2023, por Frederico Raposo.
As obras iniciaram-se na semana passada e vão prolongar-se por quatro meses, até ao final do ano. Quarteirão a quarteirão, as laterais da Avenida da Liberdade estão a preparar-se para regressar ao antigo esquema de circulação, anterior a 2012, numa alteração que visa aumentar o tráfego no eixo Marquês de Pombal – Baixa.
As laterais voltam, até ao final do ano, a funcionar como alternativa à faixa central – como era antes de 2012. E vários especialistas consideram que é de esperar um aumento do congestionamento automóvel, do ruído e da poluição às laterais.
Em 2012, era adotado o esquema de circulação que vigora até hoje. Inicialmente confuso para alguns, tinha como objetivo a redução do tráfego, das velocidades praticadas e da emissão de gases poluentes para a atmosfera. Com o novo esquema “em caracol”, as laterais da Avenida da Liberdade deixaram de ser uma alternativa à faixa central. Passaram a funcionar apenas como vias de acesso local e de velocidade reduzida.
Na altura, a cidade deparava-se com a urgência de travar um processo instaurado pela Comissão Europeia pela violação constante dos valores limite de poluentes.
Não foi bem assim: uma década depois, a realidade dos números mostra que os níveis de poluição da Avenida da Liberdade continuavam, em 2022, acima dos limites definidos, revelando uma média diária de concentração de dióxido de azoto (NO2) de 45 µg/m3 (micrograma por metro cúbico), um valor superior ao máximo permitido na legislação de 40 µg/m3.
Ao não poderem ser utilizadas como vias de atravessamento (de uma ponta à outra da avenida), as laterais passaram a ser utilizadas apenas para acesso local – para chegar a serviços ou comércio – ou para procurar estacionamento. A Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) relacionou esta diminuição do trânsito com “um aumento da fruição nas zonas pedonais adjacentes às laterais, incluindo a implementação de quiosques e esplanadas”.
Segundo Fernando Nunes da Silva, professor catedrático em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico (IST) e então vereador com a pasta da mobilidade, contagens conduzidas pela própria autarquia confirmaram-no. O fluxo de automóveis nas laterais passou de 400 por hora para 50.
Em entrevista para a Mensagem em abril deste ano, o especialista em mobilidade, alertava para a possibilidade de, com o regresso do antigo esquema de circulação, poder “regressar[-se] aos congestionamentos enormes [e] voltar a ter concentrações de poluentes extremamente fortes”.
A Câmara Municipal de Lisboa (CML) fala numa intervenção que trará “melhor circulação rodoviária” e “mobilidade suave mais simples e segura”.
Para quem anda de bicicleta, será assim mesmo?
Com um custo superior a 522 mil euros, as obras agora iniciadas incluem a alteração do esquema de circulação, a repavimentação, a implementação de novas bolsas de estacionamento para bicicletas e motociclos e a colocação de sinalização vertical e horizontal.
De fora, contudo, fica uma ciclovia. Algo que há muito vem sendo reivindicado. Para Rosa Félix, investigadora de mobilidade ativa no Instituto Superior Técnico (IST), “é uma oportunidade que se perde para fazer uma infraestrutura segura e atrativa para os ciclistas”.
Avenida da Liberdade: um “buraco” na rede ciclável de Lisboa
Na rede ciclável da cidade, a Avenida da Liberdade surge sempre como o principal elo de ligação em falta entre dois dos eixos mais concorridos por quem utiliza a bicicleta: o eixo ribeirinho e o Eixo Central.
Para quem anda de bicicleta na cidade, a Avenida da Liberdade é, a par da Avenida Almirante Reis, o canal óbvio para vir da Baixa para a zona mais alta, devido ao declive reduzido. Apesar de ser considerada pela Câmara Municipal de Lisboa como parte da rede ciclável principal – onde deve ser privilegiada a implementação de ciclovias – não há na Avenida da Liberdade um único canal dedicado à circulação de bicicletas.
“É um grande buraco”, afirma Rosa Félix, acrescentando que à Avenida falta uma ciclovia “segura e atrativa”.
A falta de infraestrutura segregada na avenida pode mesmo estar a ter como consequência o afastamento de atuais utilizadores de bicicleta e ainda daqueles que poderiam vir a considerar a bicicleta como meio de transporte, numa altura em que Lisboa tem o compromisso de diminuir o peso do automóvel nas viagens realizadas dentro da cidade – dos 47%, verificados em 2017, para os 34% até 2030 – e de fazer crescer a percentagem de viagens realizadas de transporte público, a pé e de bicicleta de 54% para 66%.
“Há muita gente a usar a Avenida Almirante Reis ao invés de usar a Avenida da Liberdade. As contagens que fazemos confirmam isso”, avança a especialista.
“A partir do momento em que abriu a ciclovia da [Avenida] Almirante Reis, houve uma transferência de pessoas da Avenida da Liberdade. Tudo o que seja mais atrativo e mais seguro vai ser usado. As pessoas mudaram a sua rota, porque preferem percursos mais seguros e passaram a fazer a ligação por ali”.
O potencial de uma ciclovia: duplicar os números
O que existe na Avenida da Liberdade não é uma ciclovia, explica Rosa Félix. Em 2012, foram pintadas bicicletas no asfalto e foi colocada sinalização vertical, alertando automobilistas para a necessidade de partilha daquele espaço com bicicletas.
Apesar das bicicletas pintadas no chão, não há para estes veículos um canal dedicado e segregado do restante tráfego.
Com a redução do trânsito nas laterais, quem utiliza a bicicleta na Avenida da Liberdade, passou a ser convidado a fazê-lo pelas laterais. Mas o esquema que agora chega ao fim também impedia de forma intencional a utilização contínua das laterais de uma ponta à outra da avenida.
A realidade dos números mostra que a grande maioria dos utilizadores de bicicleta não se mostrou seduzida pelas pinturas. As promessas de segurança e conforto com a redução dos volumes de tráfego e das velocidades praticadas não aumentaram a utilização por quem se desloca de bicicleta, e são poucos os ciclistas que se sentem confortáveis a pedalar nas laterais.
Contagens realizadas por Rosa Félix e colegas investigadores em maio deste ano revelaram que “apenas 5% dos ciclistas usavam as laterais. Não é nada!”
A descer, quando é mais fácil a bicicleta ganhar velocidade, cerca de 65% usa a faixa central e 35% circula mesmo pelos passeios centrais.
As laterais não são utilizadas pelas pessoas que utilizam bicicleta porque “elas não se sentem seguras para as usar, principalmente quando vão a subir, porque têm velocidades completamente distintas dos automóveis”.
Agora, o regresso do antigo esquema de circulação vai manter inalterada a situação. E pode piorá-la.
Para a convivência entre utilizadores de bicicleta e automobilistas, a autarquia propõe a continuação da solução encontrada: velocidade máxima de 30 quilómetros por hora nas laterais, acompanhada pela pintura de bicicletas no asfalto, sinalizando a necessidade de partilha do espaço rodoviário.
Mas com a possibilidade dos automóveis novamente percorrerem toda a avenida pelas laterais, Rosa Félix acredita que o aumento expectável dos fluxos automóveis “vai piorar” a sensação de insegurança para os ciclistas.
Atualmente, e segundo cálculos da investigadora, partindo das contagens realizadas este ano, circulam diariamente na Avenida da Liberdade cerca de 1300 ciclistas por dia. Ao lado, a Avenida Fontes Pereira de Melo – com ciclovias – tem cerca de dois mil ciclistas diários por dia. A ciclovia da Avenida Almirante Reis, utilizada como alternativa segura à Avenida da Liberdade, conta com cerca de 1600 ciclistas diários, segundo dados dos contadores da rede ciclável da cidade.
Com uma ciclovia, Rosa Félix não tem dúvida de que a Avenida da Liberdade – e a cidade – poderia ganhar centenas de novos ciclistas por dia.
Na ferramenta biclaR, desenvolvida pelo IST para dar apoio ao planeamento de redes cicláveis nos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML), e tendo por base a meta de 4% de viagens em bicicleta definida para 2025 pela Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável (ENMAC), é calculado um potencial de acréscimo de número de ciclistas diários na Avenida da Liberdade em 1200.
Isto significava:
- evitar da emissão de cerca de 60 toneladas de dióxido de carbono
- dois milhões de euros em benefícios socioeconómicos – tais como benefícios de saúde decorrentes da prática de exercício físico, da redução dos gases respirados ou da redução da sinistralidade rodoviária
E fazer uma ciclovia na Avenida da Liberdade não acrescentaria custos “por aí além” à atual obra e cujo investimento seria recuperado “a médio e longo prazo”, diz Rosa Félix.
“Os benefícios para a sociedade que advêm destas alterações são muito maiores do que aquilo que se possa pensar”, diz.
E porque não se faz?
A especialista receia que a inexistência de planos imediatos para uma ciclovia na Avenida da Liberdade possa estar relacionada com uma vontade de “não querer mexer no estacionamento”. Porque não há falta de espaço para uma ciclovia, com uma largura de fachada a fachada de cerca de 90 metros.
Para colocar uma ciclovia, há que fazer escolhas. Por exemplo prescindir de uma fiada de estacionamento.
“Há sempre lugares de estacionamento disponíveis e o preço também ajuda a fazer essa política. Temos parques de estacionamento subterrâneos. Se não, temos de começar a pensar se queremos mesmo ter três vias a entrar na direção da Baixa? A ideia não era ir libertando progressivamente a Baixa do tráfego automóvel? Com esse espaço, não daria para uma ciclovia?”Rosa Félix
A solução atualmente existente na avenida “não funciona”, sublinha Rosa Félix, acrescentando que o regresso ao anterior esquema de circulação “só vem piorar a situação”.
Para a especialista, as obras que agora deviam ser aproveitadas “para acomodar aqueles que já andam de bicicleta e que acabam por se pôr em risco na faixa central e os peões em risco no passeio central, enquanto poderia estar a fazer-se algo que não só acomodasse essas preocupações dos ciclistas atuais, como também incentivasse outras pessoas a usar a bicicleta”.
Mudança nas laterais aprovada em 2020 tinha ZER como pano de fundo
Quando o regresso ao anterior esquema de circulação das laterais foi aprovado, em 2020 e por proposta da então vereadora do PSD, Teresa Leal Coelho, estava integrado na Zona de Emissões Reduzidas (ZER) prevista para as zonas da Avenida da Liberdade, Baixa e Chiado.
“Considerando que já em 2020 a Câmara Municipal de Lisboa vem anunciar a criação de uma zona de emissões reduzidas com intervenções previstas para a Avenida da Liberdade. Essa iniciativa, nos termos em que seja aprovada pela CML, não deverá deixar de acomodar o princípio defendido nesta proposta quanto à reposição dos sentidos nas laterais da Avenida da Liberdade.”
Deliberação nº 634/CM/2020 (Proposta nº 634/2020)
Subscrita pelos Vereadores do PPD/PSD e aprovada por maioria, com 14 votos a favor (5 PS, 2 Independentes, 4 CDS/PP, 2 PPD/PSD e 1 BE) e 2 abstenções (PCP).
No âmbito desta ZER, que foi entretanto travada pelo atual executivo camarário, estava prevista a criação de uma ciclovia na Avenida da Liberdade. E previa-se, através da imposição de restrições à circulação automóvel, uma diminuição de aproximadamente 40 mil veículos por dia na Baixa, que atualmente recebe cerca de 100 mil automóveis.
Receando o aumento dos níveis de poluição e congestão automóvel, a Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta recordou, também, que o retornar do antigo esquema de circulação contínua nas laterais da avenida estava “enquadrada na implementação da ZER na Baixa, que incluía a restrição automóvel na faixa central e fortes restrições ao tráfego na Baixa”.
Ainda sobre o regresso ao antigo esquema de circulação, a MUBi denuncia a ausência de “qualquer participação pública” na decisão. Nas soluções previstas para quem usa a bicicleta, denuncia também o facto de “o projeto não tencionar sequer estabelecer ligações entre as laterais e a ciclovia existente na rotunda do Marquês, que desta forma apenas será acedida pelo passeio”.
Em abril deste ano, Fernando Nunes da Silva – que em 2012 tinha a pasta da mobilidade na CML – considerava não existir “nenhum estudo, nenhum dado” que fundamentasse o regresso ao antigo modelo de circulação.
À semelhança dos especialistas ouvidos pela Mensagem, a MUBi alerta para o efeito expectável do “aumento do tráfego motorizado nas laterais”, considerando que vai contribuir para afastar ainda mais os utilizadores de bicicletas das laterais, encorajando à utilização dos passeios e ao consequente aumento das situações de conflito entre bicicletas e trotinetas e “o crescente número de pessoas que anda a pé na avenida”.
A associação sinaliza, também, a necessidade de implementar no projeto atual medidas de acalmia de tráfego.
No projeto disponibilizado pela CML não há medidas de acalmia de tráfego e que procurem garantir o cumprimento do limite de 30 quilómetros por hora – como são o caso das lombas de velocidade.
Câmara descarta ciclovia no imediato, mas aponta para o futuro
Relativamente às obras em curso, a MUBi opõe-se “terminantemente às alterações preconizadas, as quais carecem de sentido estratégico e nos afastam de uma Lisboa saudável, sustentável e inclusiva”.
A associação defende a manutenção do atual esquema de circulação nas laterais e a melhoria do seu piso, de modo a “manter reduzidas as velocidades e volumes de tráfego que hoje ali circulam”.
Como solução para o futuro, a associação reivindica a continuidade entre os passeios da avenida e as placas centrais, com acesso automóvel reservado apenas para trânsito local e pede “a implementação urgente de uma zona de tráfego condicionado na Baixa Pombalina”, considerando que esta é “a zona mais bem servida de transportes públicos de todo o país”.
Recorde-se que a continuidade do piso entre os passeios e as placas centrais da avenida chegou a estar prevista pela própria câmara, em 2012, não tendo chegado a ser implementada.
Para as bicicletas e “dada a relevância e hierarquia daquele eixo ciclável”, a associação de promoção da bicicleta defende, tal como Rosa Félix, a criação de ciclovias na avenida.
Para já, a avenida continuará a não oferecer um canal dedicado para as bicicletas, mas em poucos anos tudo pode vir a mudar.
Contactada pela Mensagem, a Câmara Municipal de Lisboa confirma que “a implementação de ciclovia segregada na Avenida da Liberdade está a ser equacionada no âmbito da auditoria em curso às ciclovias e do projeto de requalificação da Avenida da Liberdade”.
O projeto para a requalificação da Avenida da Liberdade é algo que tem vindo a ser trabalhado pela câmara desde o mandato anterior. No Plano de Atividades e Orçamento deste ano da empresa municipal SRU – responsável pelos projetos de reabilitação urbana – o projeto de requalificação da Avenida da Liberdade está definido para o horizonte temporal de 2020 a 2024 e encontra-se na sua fase de “estudo”, contando com um orçamento total superior a 529 mil euros.
Para este ano, está programada a execução de 70 mil euros e em 2024 a empresa municipal conta com mais de 193 mil euros de investimento para este projeto.
A grande requalificação da Avenida da Liberdade só deverá arrancar após a finalização das obras ali decorrentes relacionadas com o Plano Geral de Drenagem, que deverão ficar concluídas na avenida até agosto de 2025.