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“É essencial dar prioridade aos transportes públicos, mas para isso é preciso coragem”

Entrevista com Filipe Moura. Publicado no Observador, em https://observador.pt/especiais/e-essencial-dar-prioridade-aos-transportes-publicos-mas-para-isso-e-preciso-coragem/, a 26.05.2025, por Catarina Pires.

Gil Ribeiro

A ideia de Filipe Moura para as cidades do século XXI não é nova, mas, acredita o especialista em mobilidade, exige coragem: inverter o sistema todo e dar prioridade aos transportes públicos.

Portugal está em contramão no que diz respeito à mobilidade urbana. O carro continua, e cada vez mais, a ter prioridade e a ser o modo de transporte mais usado para as suas deslocações diárias dos portugueses.

As cidades, sobretudo as das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, estão congestionadas e não é por acaso. O número de carros tem vindo a aumentar. Números do ano passado recolhidos pelo jornal Expresso indicam que existirão cerca de sete milhões de automóveis em Portugal, quase tantos como portugueses com mais de 18 anos, isto é, habilitados a ter carta de condução, que são cerca de 8,8 milhões. O trânsito automóvel bate recordes, enquanto a utilização dos transportes públicos, mesmo nas grandes cidades, não ultrapassa em muito os dez por cento segundo a Pordata.

Isto coloca as cidades portuguesas – com destaque para Lisboa, Porto, Braga, Aveiro e Setúbal — na cauda da Europa em termos de mobilidade urbana sustentável e mais longe de conseguir cumprir as metas de descarbonização e alcançar a neutralidade carbónica até 2050.

Com este contexto, não há muita volta a dar, acredita Filipe Moura. “É preciso ter a coragem de fazer uma coisa tão simples como reverter o sistema todo”, diz o professor e investigador no Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa, e coordenador do grupo de estudos de mobilidade urbana, U-Shift.

Dar prioridade aos transportes públicos

O que nos trouxe à situação atual foi, de acordo com o especialista, um crescimento desregrado das cidades no pós-guerra e a massificação do veículo automóvel alimentado a combustíveis fósseis, altamente flexível e com custos reduzidos, que permitia tempos de deslocação casa-trabalho muito mais rápidos. Mas depressa começou a saturar as infraestruturas nos corredores de acesso às cidades e nos seus centros.

“Esse trade-off permitido pelo carro — a análise compensatória de tempo de viagem versus preço do metro quadrado de habitação (mais barato quanto mais longe do centro da cidade), que funcionou durante a década de 1980/90, até porque não havia grandes alternativas, não foi acompanhado pelo investimento, que deveria ter avançado ao mesmo ritmo, em transportes coletivos”, explica Filipa Moura, que dá o exemplo do outros países europeus que, ao contrário de Portugal, fizeram esse investimento.

“Países como a Áustria, os Países Baixos, a Bélgica, a Alemanha, a França ou o Reino Unido fizeram grandes investimentos em transportes coletivos nas suas cidades, o que ainda assim não resolveu tudo”, diz o investigador, sublinhando as consequências da opção nacional.

“Isto traz-nos à situação que temos hoje: perda de qualidade do espaço público, porque os carros não se evaporam no fim das viagens e há que os estacionar, problemas de qualidade do ar, mortes prematuras direta ou indiretamente ligadas ao tráfego automóvel e um aumento sustentado de trânsito nas autoestradas, sobretudo nas áreas metropolitanas.”

A pandemia podia ter sido um ponto de viragem, mas foi apenas um intervalo. O tráfego nas autoestradas voltou a disparar, com crescimentos de oito por cento em certas vias, como a A8, de acordo com Filipe Moura.

“É preciso tirar espaço ao carro. Mas tirar mesmo”, defende o investigador. E como é que se faz isso? “É ter a coragem política de fazer a expansão do Metro e construir uma rede alargada de vias BUS como elemento estruturante dos serviços de mobilidade da cidade e a sua ligação à Área Metropolitana. Ter uma rede em grelha de vias BUS que me permita viajar de qualquer ponto a outro com um único transbordo, no máximo, em 15 minutos, e com tempos de espera máximos de sete minutos e meio. Essa, para mim, é a grande ideia. Se garantirmos isto e a pessoa souber que o autocarro não vai ser suprimido nem vai demorar 30 ou 40 minutos a chegar, então temos uma grande ideia”.

Este modelo depende de uma reorganização radical do espaço urbano: semáforos com prioridade para os autocarros, vias dedicadas com fiscalização apertada (para não haver ocupação das vias por estacionamento ilegal), redução ou eliminação do estacionamento nessas vias. Lisboa, com a sua malha radioconcêntrica, não permite uma grelha perfeita, mas pode adaptar-se. “Estamos a testar, a avaliar o nível de serviço, a pensar como complementar autocarro, metro e o comboio”, diz o investigador. O objetivo: acessibilidade, regularidade e devolver a confiança nos transportes públicos aos utentes.

“É essencial conquistar a confiança das pessoas para quebrar o ciclo da dependência do carro e isso, na minha opinião, só é feito com um sistema de transportes públicos fiável, rápido, confortável e eficaz”, considera Filipe Moura, que, por outro lado, dá como exemplos Londres, Oslo ou Singapura, que restringiram a entrada e permanência de veículos automóveis. “Não há ilusões, só com medidas firmes é que se consegue.”

A mobilidade é um direito

Filipe Moura não descarta a importância dos modos ativos de transporte. A bicicleta? Sim. Andar a pé? Também. Mas antes de tudo, transportes públicos eficientes e de qualidade. “A ordem é esta, quando se olha para a cidade como um todo”, sublinha. “Esta ordem é ainda mais importante na escala metropolitana”.

E a automatização dos transportes, ou seja, sem condutor? Também pode ser uma boa ideia… mas só se forem coletivos. “A automatização dos transportes é incontornável na mobilidade do futuro, permite ganhar eficiência, mas só é uma boa ideia se a aposta for feita nos transportes públicos”.

Embora os maiores problemas de mobilidade se concentram nas cidades das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, onde existe maior densidade populacional, a importância de dar prioridade ao investimento em redes de transportes públicos eficazes prende-se não só com questões urbanísticas e ambientais, mas também sociais e de direitos dos cidadãos.

“A Constituição garante igualdade de oportunidades e isso só é possível com acessibilidade, logo, indiretamente, os transportes públicos são um direito constitucional”.

Falando das duas grandes cidades, Filipe Moura alerta para o contraste na ordem de prioridades. Enquanto o Porto avança com projetos como o BRT ou Metrobus, Lisboa andou para trás. “Foi a única cidade na Europa que reduziu a extensão de vias BUS nos últimos cinco anos.”

Voltar ao princípio para chegar ao fim

Mas como é que se põe então em prática a ideia de dar ao transporte público o papel principal na mobilidade nas cidades portuguesas do século XXI?

Com coragem política. “É talvez o mais importante para avançar com um plano que conceba todo o sistema de mobilidade em função do transporte público, relegando o transporte individual para um plano secundário. Mas se alguém tiver a determinação de o fazer, abre um caminho que será difícil de reverter. E isso leva-nos à segunda questão.”

Com um pacto de regime: “A dificuldade da grande ideia é como é que, num período tão curto de tempo como é o de um mandato político, conseguimos infraestruturar e organizar o sistema desta maneira.Para obviar esta limitação, a única opção é, estabelecendo a prioridade, criar um pacto de regime para a concretizar.”

“Hoje temos perda de qualidade do espaço público. Os carros não se evaporam no fim das viagens e há que os estacionar, temos problemas de qualidade do ar, temos mortes prematuras direta ou indiretamente ligadas ao tráfego automóvel e um aumento sem precedentes de trânsito nas autoestradas, sobretudo nas áreas metropolitanas.”

Com literacia em mobilidade urbana: “Para criar uma maior recetividade das pessoas a esta inversão do sistema, é importantíssimo combater a iliteracia sobre a mobilidade, explicando, por exemplo, às famílias que estão a tomar decisões ineficientes. Através de diagnósticos e aconselhamento personalizados, revelar o que se poderia poupar se substituíssem o ou os carros por transporte público. Claro que para isso também é essencial ter um sistema de transportes coletivos eficaz e confortável que seja visto como alternativa ao carro, eventualmente, complementado com sistemas eficientes de aluguer de carros para quando este modo se torna dificilmente contornável”.

Com um marketing ultra-eficaz: “Temos de colocar os grandes criativos do marketing a trabalhar na promoção da utilização do transporte público, vendendo-o como um produto trendy, cool e por aí fora (mais uma vez, para isso é preciso garantir que seja cómodo, rápido e eficaz).  Se se consegue convencer pessoas a comprar iPhones quando não seria a decisão racional, deve ser possível convencê-las a usar transportes coletivos para as deslocações regulares.”

Pedimos uma ideia a Filipe Moura e ele deu uma série delas, todas para chegar à central: priorizar os transportes públicos, custe o que custar. É esse o caminho para cidades sustentáveis e funcionais. “Mantenho a minha guerra e mais um anglicismo: não há silver bullet, esqueça. A existir são os transportes coletivos de grande qualidade. É só seguir o exemplo de várias cidades da Europa.”