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Já nasceu o último condutor?

Filipe Moura e Ana Martins discutem o futuro que passa pela utilização de veículos autónomos, na revista E (Expresso) sobre mobilidade.

Quando chega ao seu trabalho, o carro segue viagem, e só tem de lhe dizer a que horas é que ele tem de estar de volta e com quanta bateria. Já não precisa de o estacionar, como fazia em 2020,  quando havia mais de 5 milhões de carros em Portugal, um por cada duas pessoas, e quase todos passavam 22 horas por dia parados e sem uso. Os parquímetros tentavam então que os carros não engolissem as cidades: para uns eram uma dor de cabeça, para outros uma brutal fonte de receitas. Agora, passados todos estes anos, muitos desses lugares de estacionamento foram substituídos  por jardins, ciclovias ou passeios mais largos e há cada vez mais pessoas a preferirem partilhar em vez de comprar carro. Com menos trânsito e mais espaço livre, as cidades até parecem maiores.

Há quem acredite que os primeiros sinais deste futuro vão surgir já na próxima década e há quem prefira atirar esta realidade lá mais para o meio do século. A verdade é que alguns especialistas em transportes e mobilidade admitem que nos próximos anos já possa haver carros totalmente autónomos a circular em Portugal, mais provavelmente em autoestradas do que no meio das cidades. Mas serão precisos muito mais do que 10 anos para que todos os veículos deixem de ter condutor. Por isso, acredita-se que ainda está para nascer o último português a tirar a carta de condução.

O que está hoje à vista é que todos os carros novos já trazem algum tipo de automatização, seja o controlo de velocidade, a travagem ou o estacionamento automático, a identificação de faixas na estrada, o apoio nas ultrapassagens ou a deteção de peões. E, na verdade, apesar de não circularem nas estradas europeias, os carros que andam sozinhos já existem. Nos arredores da cidade  americana de Phoenix, no Arizona, por exemplo, já são usados carros autónomos da Waymo, uma empresa da Google dedicada ao desenvolvimento deste tipo de veículos. Por toda a Europa  decorrem testes-piloto, e também em Portugal já houve um, em 2018, realizado na CREL. Além disso, desde maio do ano passado que há um shuttle autónomo a circular no campus da Faculdade  Nova SBE, em Carcavelos (Lisboa), e um outro, há já mais tempo, no Hospital Rovisco Pais, na Tocha (Coimbra).

Se não se foi mais longe — nem em Portugal nem na Europa — é mesmo porque as convenções europeias que regulam o trânsito ainda não permitem que um carro circule sem condutor. A única alteração mais recente, feita em 2016, à Convenção de Viena passou a permitir que estes carros com capacidade de funcionarem sem condutor sejam testados, mas sempre com alguém ao volante. Até porque há muito ainda por definir, tanto em matéria de responsabilidade em caso de acidente como na ética a aplicar aos algoritmos ou na cibersegurança necessária, devido à quantidade de dados que irão ser recolhidos em permanência. No dia em que tudo estiver  definido e for legal ter um veículo a andar sem condutor abrem-se as portas para uma total revolução da condução e da mobilidade.

“Os veículos autónomos vão progressivamente ganhar espaço e começará a haver vias dedicadas à sua circulação, como acontece hoje com os autocarros. Depois, lentamente, vai dar-se o contrário: quem quiser conduzir terá de andar numa via especial. O grande problema neste momento é saber qual deverá ser a abordagem durante a fase de transição, quando andarem veículos com e sem condutor na mesma estrada. Ainda está toda a gente ‘às apalpadelas’ nesta matéria”, defende Filipe Moura, especialista em mobilidade e professor no Instituto Superior Técnico (IST). “Além disso, as pessoas vão continuar a querer comprar carro  durante algum tempo. Não vamos passar de repente para uma total partilha de automóveis nem permanecer neste paradigma de propriedade. Será uma mistura.”

UM AIRBNB DE CARROS
Neste momento, existem mais de 5 milhões de automóveis em Portugal, o equivalente a uma fila de 30 mil quilómetros, ou seja, duas vezes a rede inteira de estradas nacionais. Em hora de ponta,  entro das cidades, isso é sinónimo de congestionamento, e para o resolver é preciso reduzir o número de automóveis.

Cidades como Londres, Berlim, Milão ou Estocolmo têm tentado tirar os carros das zonas urbanas aplicando taxas de entrada. Por cá, a redução do preço dos passes dos transportes públicos tenta fazer com que mais pessoas se libertem do automóvel. Lisboa aposta nos parquímetros e no Porto será lançada uma taxa de 7,50 euros por cada automóvel que permaneça mais de 30 minutos no  centro histórico. Mas vai ser preciso muito mais, e a esperança recai sobre as gerações mais novas, fãs da ideia de partilha de bicicletas, trotinetas ou motos e sem o apego que os pais tinham pela ideia de possuírem carro próprio. No Reino Unido, por exemplo, o número de jovens a tirar a carta de condução caiu 40% nos últimos 20 anos.

Só que não vai ser de um dia para o outro que os portugueses vão deixar de querer ter um automóvel. Tendo essa ideia em mente, Ana Martins lançou-se para a sua tese de doutoramento com um olho nos carros autónomos e outro na partilha. “Fala-se muito em carsharing [partilha de automóveis] numa perspetiva de frotas empresariais. Ou seja, acredita-se que as pessoas vão deixar de
querer ter carro próprio, preferindo recorrer a plataformas de partilha de automóveis autónomos”, afirma a investigadora do IST. “Acho que não vai ser assim. Ainda estamos muito longe do sentido de partilha que existe em países como a Holanda e acho que não vamos abrir mão de ter um carro tão rapidamente.”

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Texto de Raquel Albuquerque

Publicado em https://expresso.pt/podcasts/a-revista-do-expresso/2020-01-18-A-nova-decada-Ja-nasceu-o-ultimo-condutor- a 18 Jan 2020