Entrevista com Rosa Félix. Publicado no Expresso, em https://expresso.pt/revista/fisga/2023-03-02-Mobilidade-ciclavel-Portugal-e-o-pais-europeu-que-menos-investe-no-uso-da-bicicleta–30-centimos-por-pessoa–c56b6554, a 02.03.2023, por Mara Tribuna e Carlos Esteves.
Na lista das 90 cidades mais bike-friendly do mundo, as primeiras dez posições são praticamente dominadas pela Europa, e Lisboa é o único município português a entrar no ranking. A bicicleta tem ganhado cada vez mais adeptos nos últimos anos — mas nem todas as cidades estão a conseguir responder aos desafios da mobilidade ciclável
Nesta cidade com praticamente o mesmo tamanho que Lisboa, mais de metade da população anda de bicicleta todos os dias, as ciclovias estendem-se ao longo de 420 quilómetros e o estacionamento para velocípedes não falta: só na estação ferroviária central existem mais de 30 mil lugares. Utrecht, nos Países Baixos, é a cidade mais bike-friendly do mundo — e não é por acaso que tem o maior bicicletário do planeta, onde podem estacionar até 12.500 bicicletas.
Ao contrário de Utrecht, nem todas as cidades são cicláveis. Das condições meteorológicas ao número de acidentes, há uma série de fatores que determinam se um determinado lugar é mais ou menos ‘pedalável’. E há um ranking que avalia isto mesmo: o “Global Bicycle Cities Index 2022”. Trata-se de uma lista composta por 90 cidades e nove das primeiras dez posições são ocupadas pela Europa. Aliás, Hangzhou, na China, é a única cidade não europeia a entrar no top 10, o que se deve, em grande parte, aos pontos alcançados no parâmetro “sistema de partilha de bicicletas”.
É um modo de transporte sustentável, que tem ganhado cada vez mais adeptos nos últimos anos: “Há mais gente a usar bicicleta e isso é um fenómeno mundial”, diz Rosa Félix, investigadora em mobilidade ciclável no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. Mas houve uma altura de maior boom na procura e uso de velocípedes: a pandemia.
“As pessoas optavam pela bicicleta própria não só para se deslocar, mas também, durante os confinamentos, para fazerem exercício ao final do dia e apanharem um pouco de ar”, acrescenta. Foi nesta altura que a utilização da bicicleta elétrica disparou.
A pandemia impulsionou a aposta na mobilidade ciclável. Muitos governos, sobretudo da Europa, quiseram abraçar a oportunidade que a covid-19 criou e anunciaram, em 2020, mais quilómetros de ciclovia. Roma foi de longe a cidade mais ambiciosa, prometendo uma rede de 150 km, e Lisboa não ficou muito atrás: mostrou intenção de construir mais 90,7 km. O Porto também anunciou a criação de mais 30 km de rede ciclável para “resgatar o espaço público”, no entanto, a autarquia ainda não pôs mãos à obra.
Já a Câmara Municipal de Lisboa está a dar mais ao pedal, ainda assim, não cumpriu o plano traçado pelo então autarca Fernando Medina: ter uma extensão total de 200 quilómetros de ciclovia em 2021. Estamos em 2023 e foram construídos 155 km, “sendo que apenas 125 são de infraestrutura segregada”, isto é, são ciclovias próprias, detalha Rosa Félix. Na mesma classificação do “Global Bicycle Cities Index 2022”,
Lisboa aparece em 63º lugar (com uma pontuação de 29,51 em 100), ficando atrás de Londres e à frente de Estocolmo. Mais nenhuma cidade portuguesa entra na lista.
Em 2019, Portugal adotou a Estratégia Nacional para Mobilidade Ativa Ciclável para a década 2020-2030, com metas claras para aumentar as deslocações feitas de bicicleta, reduzindo diretamente o uso do
automóvel privado. No entanto, o país tem um problema severo na alocação de fundos: só investe 30 cêntimos por pessoa na promoção da bicicleta, mostra um relatório publicado em dezembro pela Federação Europeia de Ciclistas (ECF na sigla em inglês) sobre o estado das estratégias nacionais de ciclismo no continente.
É um valor que contrasta bastante com o dinheiro gasto na Flandres, no Norte da Bélgica (€45), e na Irlanda (€36). Aliás, Portugal é mesmo o país da Europa com o menor investimento total anual na mobilidade ciclável per capita. “Parece que ainda se olha para as pessoas que andam de bicicleta como uma minoria e em quem não vale a pena pensar, mas é preciso apostar para que esta ‘minoria’ cresça, até porque as cidades já não têm espaço, as cidades precisam de melhorar a qualidade do ar, precisam de melhorar tudo…”, afirma Rosa Félix.
Os benefícios do ciclismo
Pedalar faz bem ao ambiente, à saúde e à economia. Poupa emissões equivalentes a mais de 16 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2eq — uma forma de quantificar os diferentes gases com efeito de estufa em unidades de CO2) por ano só na UE, estima a Federação Europeia de Ciclistas. Além de reduzir a poluição atmosférica, reduz também a poluição sonora, o que traz claros benefícios para a saúde humana, diminuindo o número de mortes prematuras associadas a estes dois tipos de poluição.
Anualmente, andar de bicicleta previne cerca de 18 mil mortes prematuras nos 27 Estados-membros da União Europeia e Reino Unido, segundo o mesmo relatório da ECF sobre os benefícios do ciclismo, que
não ficam por aqui: diminui a morbilidade, contribui para a longevidade, e ajuda a prevenir uma série de doenças, incluindo do foro mental. “O ciclismo produz benefícios globais de €150 mil milhões por ano [na
Europa]. Destes, mais de €90 mil milhões são externalidades positivas para o ambiente, saúde pública e sistema de mobilidade”, lê-se.
Conscientes de todas estas vantagens, há várias autarquias a adotarem iniciativas como o “no car day”, dia em que as pessoas são incentivadas a não utilizarem o seu automóvel privado. Acontece, por exemplo, em Hannover (Alemanha), Berna (Suíça), Copenhaga (Dinamarca) e Antuérpia (Bélgica). “Só restringindo a atratividade do uso do automóvel é que as pessoas realmente podem considerar mudar de hábitos”, reflete a investigadora em ciclismo urbano e mobilidade pedonal.
Aumentar zonas pedonais e fechar avenidas centrais, aos fins de semana, é outra forma de restringir a utilização do carro e de impulsionar o uso da bicicleta — tal como aumentar os quilómetros da rede ciclável consoante a densidade populacional e o tamanho do território. Viena é a cidade europeia com mais infraestruturas de ciclismo por dez mil habitantes, enquanto Paris é a que tem mais infraestruturas de ciclismo por quilómetro quadrado, mostram os dados da Federação Europeia de Ciclistas enviados ao Expresso.
Acidentes estão a aumentar
Aumenta o número de pessoas a andar de bicicleta, aumenta a sinistralidade. Em Portugal, os acidentes com velocípedes cresceram 7,2% nos primeiros dez meses do ano passado, face ao mesmo período em 2021, indica o relatório mais recente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária. No total, houve 2562 acidentes envolvendo ciclistas, que provocaram 2466 vítimas (um aumento de 6,4%) entre janeiro e outubro de 2022.
Para diminuir estas estatísticas, uma das metas portuguesas que consta na Estratégia Nacional para Mobilidade Ativa Ciclável é a redução da sinistralidade rodoviária de ciclistas em 50% até ao final da década. Mas Rosa Félix alerta que “são as pessoas que tomam decisões, a culpa não é do veículo”. “O automobilista que passa no vermelho é também o peão que passa no vermelho quando não vê ninguém e é também o ciclista que passa no vermelho quando não vê ninguém”, nota a investigadora do Instituto Superior Técnico.
Nos países da União Europeia, mais de metade (57%) das mortes de ciclistas ocorrem em estradas urbanas e 42% em estradas rurais, de acordo com a European Transport Safety Council. Para que o número de sinistros e de mortes seja mais baixo é preciso investir em boas infraestruturas e dar mais condições de segurança para as pessoas circularem, o que pode passar por generalizar o uso de capacete — que não é obrigatório em Portugal — e reduzir a velocidade máxima dos automóveis dentro das localidades (50 km/h).