Presidente eleito terá de compatibilizar as promessas do seu programa – como estacionamento gratuito e criação de parques de estacionamento – com a diminuição do automóvel em Lisboa. Para não pôr em causa luta contra a crise climática.
A Mensagem entrevista Filipe Moura.
Artigo publicado em A Mensagem: https://amensagem.pt/2021/10/02/mobilidade-lisboa-metas-ambientais-carlos-moedas-cumprir-desafios/ , a 02.10.2021, por Frederico Raposo
A mobilidade tem estado no cerne da discussão pública e nas redes sociais desde a campanha eleitoral em Lisboa. Aconteceu nos debates entre Carlos Moedas e Fernando Medina – e, embora numa sondagem do Expresso uma larga maioria (60%) dissesse concordar com a política de mobilidade da autarquia, muitos dos textos de análise dos surpreendentes resultados indicam essa como uma das pedras de toque da derrota do socialista.
Carlos Moedas usou-a, colocando cartazes na zona de Arroios, onde a polémica sobre a Av. Almirante Reis esteve ao rubro, falando sucessivamente do assunto e prometendo rever toda a estrututa ciclável em Lisboa, silos em bairros e estacionamento gratuito para residentes.
Ora, a questão é mais funda. Lisboa é das cidades europeias com mais emissões de gases de efeito estufa, mais do que Madrid, Paris ou Londres. Sim, leram bem. Talvez não se note por causa da proximidade do mar, ou do vento que sempre afasta a sensação de poluição.
Para Filipe Moura, investigador e professor de Sistemas de Transportes no departamento de Engenharia Civil e Arquitetura no Instituto Superior Técnico (IST), algumas das medidas apresentadas por Carlos Moedas, como a “eliminação” de ciclovias como a da Av. da Liberdade, ou a criação de mais parques de estacionamento ou a gratuitidade dos primeiros vinte minutos de estacionamento para residentes parecem ser difíceis de compatibilizar com as metas climáticas assumidas pela cidade. E “chocam diretamente com a visão estratégica definida pelo executivo anterior.”
Na entrevista à Mensagem, antes das eleições, Moedas dizia que as questões não eram bem assim. “A esquerda ao querer diabolizar quem não é de esquerda teve esse efeito – tudo o que eu dizia era logo visto pelo outro ângulo. Eu dizia: esta ciclovia está mal feita. E eles, logo: ‘Tão a ver, ele não gosta de ciclovias, não votem nele que ele vai acabar com as ciclovias. E isso é mentira! E eu dizia para mim: Bolas, eu disse isto porque isto está mal feito, não contra as ciclovias! Era um bocadinho a pessoa estar ali, no dia a dia, e já sabia que cada coisa que dizia havia um grupo de pessoas que pegava e dizia ‘Pronto, ele é dos maus. Atenção. Os outros é que são os bons’. Temos que acabar com esta ideia dos bons e dos maus. A pessoa está nesta luta para mudar a cidade para melhor!”
O que é certo é que até 2030, para Lisboa ser essa cidade melhor, tem o compromisso de reduzir em 70% as suas emissões de gases com efeito de estufa face a valores de 2002. Em 2018, segundo o Plano de Ação Climática (PAC 2030), documento que esteve em discussão pública no passado mês de agosto, a redução alcançada já se estimava em 40%. Nesse ano, 43% do total de emissões na cidade de Lisboa tinham origem no setor dos transportes – 1053 quilo toneladas equivalentes a dióxido de carbono (kt CO₂eq).
Todos os dias entram na cidade cerca de 370 mil automóveis, que se juntam aos 160 mil carros dos residentes da cidade.
Todos os dias entram na cidade cerca de 370 mil automóveis, que se juntam aos 160 mil carros dos residentes da cidade. É algo que os lisboetas estão de novo a sentir com o fim do desconfinamento. Em zonas como a Avenida da Liberdade, “o trânsito automóvel é o principal responsável pela emissão de partículas finas (PM10) e de dióxido de azoto (NO2)”, lê-se no documento apresentado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) este ano.Avenida da Liberdade, em Lisboa. Vídeo: Frederico Raposo
Segundo a Comissão Europeia, o setor dos transportes representa cerca de um quarto do total de emissões de gases com efeito de estufa na Europa e “é a maior causa de poluição nas cidades”. “A redução local das emissões de CO2 passa, principalmente, pelo tráfego automóvel”, afirma Filipe Moura.
Os números da mobilidade em Lisboa
- Em 2018, entravam em Lisboa 370 mil carros por dia. Alinhados, fariam fila de Lisboa a Paris (MOVE 2030 – Visão Estratégica para a Mobilidade, CML);
- A descida do preço dos passes de transportes públicos levou a um aumento de 32% na utilização (MOVE);
- 69% das deslocações em Lisboa são inferiores a 5 quilómetros. Um terço destas são feitas de carro particular (INE);
- Viagens a pé alcançaram 30% do total de viagens na cidade em 2017, face a 17% em 2011 (MOVE);
- Deslocações em bicicletas cresceram 200% face a 2011, mas em 2017 representavam apenas 0,6% do total da cidade (MOVE);
- Circulam 500 bicicletas por hora na Avenida da República à hora de almoço e 120 na Avenida Almirante Reis (Como Pedala Lisboa, 2001, CML);
- De 2017 para 2020 a utilização da bicicleta cresceu 138% em Lisboa (U-Shift – IST);
- Em 2020, Lisboa tinha 125 km de ciclovias, dos quais 87,5 quilómetros em ciclovias segregadas (Como Pedala Lisboa);
- Sistema Gira atingiu este ano 4 milhões de viagens, com 24 mil utilizadores ativos em 2020.
“Eliminar as ciclovias com problemas”
No programa para Lisboa, Carlos Moedas reconhece que “a mobilidade é uma peça central da luta contra as alterações climáticas”, “uma das maiores ameaças que o planeta e a humanidade enfrentam”, mas algumas das propostas de mobilidade apresentadas levantam dúvidas e “contradições”.
Durante a campanha eleitoral, a ciclovia da Avenida Almirante Reis foi ponto central de discórdia. Dividiu os lisboetas e teve direito a destaque no programa político que conquistou mais votos nas eleições do passado dia 26 de setembro. É para “eliminar”, tal como outras “ciclovias com problemas”, procurando-se “alternativas viáveis”, lê-se no programa do presidente eleito, Carlos Moedas. Essa alternativa não se sabe, ainda, qual poderá ser, mas deverá estar inscrita no programa de governo que terá de ser aprovado.
Rosa Félix, investigadora em mobilidade urbana no IST, defendeu a localização da ciclovia nesta avenida de Lisboa, por se encontrar num “de dois canais óbvios” de ligação da zona da Baixa ao planalto da cidade – o outro canal é a Avenida da Liberdade, já que nestas duas artérias os declives médios são inferiores a 5%. De acordo com a investigadora, a circulação de bicicletas na Avenida Almirante Reis aumentou 400% desde 2019, altura em que não existia, ali, ciclovia.
Hoje, circulam pela nova ciclovia uma média de 120 utilizadores de bicicleta por hora.
Filipe Moura acredita que, dependendo da execução da proposta, a eliminação da ciclovia pode mesmo ter o efeito contrário ao desejado – o de diminuir o congestionamento automóvel ali. Se a eliminação desta ciclovia resultar na disponibilização de mais duas vias de circulação automóvel, o resultado pode ser o aumento do tráfego. “Cada vez que há um aumento de capacidade, há uma indução da procura”, explica.
Estacionamento gratuito aumenta uso do carro?
Outra das propostas de Carlos Moedas para o futuro da mobilidade em Lisboa é a criação de “um silo automóvel em cada freguesia”. Esta proposta surge a par de outra relacionada com o estacionamento: para os residentes, os primeiros 20 minutos diários passam a ser gratuitos em qualquer local da cidade, seguindo-se, para estes, um desconto de 50% nos restantes períodos, “em todas as tarifas EMEL”.
Ora, segundo os espacialistas, é nas zonas da cidade com melhor cobertura de transportes públicos e melhores acessibilidades, aquelas onde a EMEL funciona, que o caminho para a redução da dependência automóvel e para a redução das emissões tem de ser feito “limitando o estacionamento, reduzindo a capacidade de estacionamento e aumentando o seu custo”, diz Filipe Moura. Pela dissuasão.
A eliminação progressiva de lugares de estacionamento à superfície tem sido política seguida por cidades de toda a Europa, por isso mesmo, para reduzir o trânsito, a poluição do ar, o ruído e, em simultâneo, aumentar a segurança rodoviária. Paris está a eliminar 60 mil lugares de estacionamento automóvel à superfície, de um total existente de 140 mil, e em Oslo já não é possível estacionar no centro da cidade.
Na capital da Noruega foram removidos 700 lugares, substituídos por passeios e ciclovias, e a cidade foi uma das primeiras do mundo a alcançar a Visão Zero, que Lisboa também definiu como objetivo até 2030 – zero mortes nas estradas.
Mas as contradições não aparecem só agora, com Carlos Moedas. Ainda este ano, com Fernando Medina à frente da Câmara Municipal de Lisboa, foi implementada a gratuitidade da emissão do dístico de residente, que permite o estacionamento gratuito na zona de residência ao primeiro veículo de cada agregado familiar da cidade. A medida, patente no novo regulamento geral de estacionamento, foi, para o especialista, “um mau sinal”, subentendendo um “direito” a estacionar que não existe noutras capitais europeias.
“O que é que a política municipal de transportes tem de fazer quando há muita gente a querer usar o sistema? É ter o pau e a cenoura”. Ou seja, a recompensa e o castigo. “Neste caso, aquilo que o presidente [eleito] propôs são só cenouras. O que é possível fazer é dizer que vamos limitar a utilização do carro porque claramente tem externalidades, impactos ambientais, ocupação de espaço e temos de arranjar uma maneira de reduzir a sua utilização”, defende o especialista.
A oferta dos primeiros 20 minutos pode conduzir a um aumento de tráfego, à “pequena viagem” e àquilo que Filipe Moura apelida de “trânsito parasita” – gerado pelos condutores que procuram estacionamento na cidade. “Vai haver um efeito de indução de procura de estacionamento”, garante.
Atualmente, 69% das deslocações em Lisboa são inferiores a cinco quilómetros. Segundo dados do INE, de 2017, um terço destas viagens são feitas de carro particular.
Silos de estacionamento só com retirada de carros da rua
O mesmo acontece com a promessa de construção de “parques multifuncionais de estacionamento para residentes em todos os bairros” que pode, também, levar ao aumento da utilização do carro nas 24 freguesias de Lisboa. “Ao dizer que vamos ter lugares para toda a gente, poderá querer dizer que as pessoas vão pensar em comprar mais carros”.
A forma de execução dos novos parques não está esclarecida o que para Filipe Moura deixa espaço a que haja implementação positiva, caso a intenção seja “tirar os automóveis do espaço público, para o devolver ao cidadão”. Caso contrário, se acumular, os novos parques serão “um péssimo sinal”: “Se precisamos de fazer uma transição energética rapidamente, para garantir ação climática, não podemos estar a contemporizar esta transição”.
Carlos Moedas e as 100 cidades neutras em carbono
Além de assumir o desafio de reduzir em 70% as suas emissões de gases com efeito de estufa, Lisboa quer atingir a neutralidade climática até 2050, altura em que as emissões devem ter sido reduzidas entre 85% a 90%.
Enquanto comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moedas foi responsável pela criação de cinco Conselhos de Missão (Mission Boards), com o objetivo de promover ações europeias em matérias como saúde e ambiente. Um desses conselhos, dedicado às alterações climáticas, foi o responsável pelo lançamento, no passado dia 29 de setembro, de uma iniciativa destinada a apoiar, na União Europeia, 100 cidades dispostas a abraçar o desafio de alcançarem impacto neutro no clima até 2030.
A chamada está, neste momento, aberta a todas as cidades que pretendam alcançar esta meta. Se Lisboa aderir à iniciativa, terá de acelerar as suas metas climáticas e os seus objetivos de redução de emissões de gases com efeito de estufa.
O projeto europeu é gerido por Matthew Baldwin, coordenador europeu para a segurança rodoviária que a Mensagem entrevistou no passado mês de setembro.
MATTHEW BALDWIN
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Recorde-se, ainda, que Lisboa integra o Grupo C40 de Grandes Cidades para a Liderança Climática – é uma de 97 cidades articuladas numa rede global que pretende desenhar estratégias de adaptação e mitigação das alterações climáticas. As cidades que integram a rede devem adotar estratégias de ação climática “ousadas”.
Pode a ZER ver a luz do dia com Carlos Moedas?
Com o objetivo de retirar do centro da cidade 40 mil automóveis por dia e de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em cerca de 60 mil toneladas por ano, a Zona de Emissões Reduzidas para as zonas da Avenida da Liberdade, Baixa e Chiado (ZER ABC) foi anunciada em janeiro de 2020 e a sua entrada em funcionamento, restringindo a circulação de veículos privados em Lisboa, chegou a estar calendarizada para junho do ano passado. Só para a Avenida da Liberdade estava prevista a eliminação de mais de 350 lugares de estacionamento, que dariam lugar ao alargamento de passeios e ciclovias.
No total, seriam recuperados ao automóvel, para usufruto público, 4,6 hectares, e seria privilegiado o estacionamento de moradores, cuja oferta deveria crescer 50%, dadas as restrições de circulação e estacionamento à superfície para não moradores.
Veio a pandemia e isso foi motivo para Fernando Medina colocar um travão à medida. Seria um travão temporário, apenas, já que a ZER ABC – bem como a possibilidade de criação de outras zonas de tráfego restrito pela cidade – constava do programa eleitoral da candidatura Mais Lisboa, encabeçada por Fernando Medina. E com a medida estavam de acordo todas as outras forças políticas.
Foi Carlos Moedas quem venceu as eleições e no seu programa não havia nenhuma referêcia à ZER, um dos mais ambiciosos planos de mobilidade a implementar em Lisboa. Sabe-se, porém, que os dois vereadores, agora em fim de funções, eleitos pelo PSD – partido que apoiou a candidatura de Carlos Moedas – votaram favoravelmente o MOVE, documento que apresenta a visão estratégica da cidade para a mobilidade até 2030.
O documento, aprovado com o voto favorável da maioria dos vereadores municipais, tem na implementação da ZER um dos pilares estratégicos. O mesmo acontece no Plano de Ação Climática da CML.
Apesar de aprovado, os quatro vereadores eleitos pelo CDS-PP – partido que também apoiou a candidatura do presidente eleito – votaram desfavoravelmente o MOVE.
A aprovação da visão estratégica para a mobilidade de Lisboa pode vincular a ação política às metas assumidas até 2030, mas não se sabe se a forma de o fazer será restringindo a circulação automóvel nas zonas propostas pelo plano original da ZER. No programa não consta a ZER nem quaisquer medidas de restrição à circulação automóvel na cidade.
Há cidade dos 15 minutos sem ZER?
Sabe-se, porém, que o próximo executivo municipal tem como objetivo promover “a transição de um modelo de cidade baseado no carro e nos transportes, promovido nas últimas décadas, para um modelo de cidade baseado na proximidade”.
Para o presidente da associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira, a Zona de Emissões Reduzidas “é um elemento absolutamente fundamental de uma cidade que verdadeiramente se quer capital verde europeia”. O ambientalista defende que Lisboa deve, “claramente, restringir mais o tráfego automóvel”.
Durante o período pré-eleitoral, Carlos Moedas referiu, por várias ocasiões, ao conceito do urbanista Carlos Moreno da cidade dos 15 minutos como modelo para a cidade de Lisboa. Este conceito privilegia as deslocações a pé, de bicicleta ou de transportes públicos, evitando, sempre que possível, a utilização do automóvel.
Esta abordagem do planeamento urbano assenta na ideia da autossuficiência da vida de bairro, da proximidade a serviços e infraestruturas e coloca o foco na promoção da sustentabilidade e da qualidade de vida, favorecendo as relações de vizinhança.
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“Acho que as zonas ZER vêm de mão dada com aquilo que o próprio Carlos Moedas tem no seu programa, que é esta ideia da cidade dos 15 minutos e que pressupõe o uso do espaço público para a vivência de proximidade. É incompatível ter muitos carros e querer uma cidade de 15 minutos”, afirma Filipe Moura, acrescentando que a implementação das ZER “seriam uma consequência de uma correta implementação do conceito da cidade dos 15 minutos, tal como Carlos Moreno o apresenta”.