Pedalar no dia-a-dia tornou-se a forma mais eficiente de andar em Lisboa
Ciclovias são mais comuns e os ciclistas frequentes também. Lisboa está a mudar, dizem os utilizadores, que já nem conhecem toda a gente com quem se cruzam nas ciclovias. Na véspera do Dia Mundial da Bicicleta, o DN foi perceber como se movem os ciclistas diários pela capital
Há dez anos, os ciclistas em Lisboa eram tão poucos que se conheciam todos. “Em 2009 passava uma pessoa e nós acenávamos. Hoje em dia é ridículo.” A recordação é de António Pedro, arquiteto urbanista e um dos primeiros utilizadores frequentes de bicicletas na capital. A propósito do Dia Mundial da Bicicleta que se assinala amanhã e nove meses depois do lançamento do sistema partilhado de bicicletas da EMEL, o DN foi conhecer quem faz deste o seu meio de transporte habitual e porque está a ganhar adeptos.
“É a forma mais lógica de me deslocar”, começam por referir quase todos os entrevistados pelo DN. A deslocação é feita porta a porta e sem os entraves dos engarrafamentos, problemas de estacionamento ou atrasos dos transportes públicos. A cidade também mudou muito nos últimos anos e tornou-se mais amiga das bicicletas. Ainda assim, há passos a dar para que seja cada vez mais fácil optar por este meio como transporte diário. Faltam ciclovias (que a câmara quer duplicar até 2021), mas falta também uma maior compreensão por parte dos automobilistas na partilha da via com as bicicletas.
António Pedro e David Vale, da MUBi, a associação para a mobilidade urbana em bicicleta, estrearam nas andanças em duas rodas a pedais há cerca de dez anos. Hoje “conduzem” bicicletas elétricas, por causa das subidas a que os seus percursos diários obrigam, mas nem sempre foi assim e não se deixam ir na conversa de que Lisboa tem demasiadas inclinações para ser amigável para ciclistas.
Quanto ao mito das colinas, “em Lisboa, 74% das ruas têm uma inclinação plana ou quase plana (até 5%). O caminho mais curto nem sempre é o melhor, quando se anda de bicicleta. É recomendável testar-se as várias hipóteses, mesmo que se demore um bocadinho mais, essa diferença de tempo pode ser a diferença entre fazer o percurso com esforço ou não”, sublinha a doutoranda em Sistemas de Transportes no Instituto Superior Técnico Rosa Félix.
No caso de António Pedro, o seu percurso inclui duas subidas diárias à Graça onde deixa o filho na creche. Sem hipótese de contornar as subidas, rendeu-se às bicicletas elétricas. Da Graça segue para Alcântara.
Já David Vale faz todos os dias 10 quilómetros para o trabalho. “Só comprei a elétrica por causa da subida, na zona da Ajuda. Já fazia o percurso antes, chegava era a suar.”
Ideal para fugir ao trânsito
David Vale foi fazer o doutoramento para Inglaterra em 2003 e foi aí que começou a andar de bicicleta. “Estava em Newcastle e achava que o bilhete de metro era caro e comecei a pensar “vou a pé”, mas era aquela distância em que pensamos que a pé é muito, mas de bicicleta faz-se bem.” Comprou uma em segunda mão, “muito ordinária”, mas foi assim que começou a ligação diária às duas rodas a pedais. Regressado a Portugal, em 2006, quis continuar a deslocar-se da mesma maneira que fazia em Inglaterra. “A bicicleta, do ponto de vista egoísta, é a maneira mais rápida que tenho de chegar a qualquer lado.” O professor universitário dá o exemplo de nas suas deslocações de bicicleta demorar sempre 30 minutos entre casa e o trabalho, mas que esse tempo é imprevisível se estivermos a falar numa deslocação de carro à hora de ponta. “Isto para mim vale ouro. Sei que tenho de ir buscar as minhas filhas à escola e que se elas saem às 17.30, eu só preciso de sair do trabalho às 17.00 para estar lá a horas.”
Para perceber se é possível fazer estas distâncias mais longas, o DN resolveu também fazer um percurso de casa-trabalho, neste caso da zona da Estefânia até às Torres de Lisboa. Para tal usou uma bicicleta do sistema GIRA elétrica, e recorreu ao serviço Bike Buddy da MUBi, em que um ciclista experiente, neste caso António Pedro, ajuda um iniciante a escolher o melhor caminho de bicicleta para a distância que quer percorrer.
A bicicleta é assim, no entender destes utilizadores experientes, o meio de transporte ideal para percorrer distâncias até 7,5 km, ou seja, de meia hora. E não precisam de ser elétricas, como mostram Nuno Fonseca, Joana Martins e Nuno Fernandes. Os três aderiram a este meio de transporte mais recentemente: em setembro para o casal Joana e Nuno e há um ano e meio para o caso de Nuno Fernandes. Todos eles começaram de alguma forma a sentir que a bicicleta era o meio de transporte que melhor respondia às suas necessidades.
Nuno Fernandes, de 28 anos, está a fazer o doutoramento em Geografia e desloca-se todos os dias de São Bento até à Cidade Universitária. E apesar das subidas que encontra nos percursos, não tem dificuldade em apontar esta como uma decisão vencedora. “Os transportes públicos começaram a degradar-se, andava descontente e um amigo meu estava a começar a andar de bicicleta e eu pensei que se calhar também era bom para mim.”
Desde então melhorou a condição física e faz todas as deslocações na cidade com a sua companheira de duas rodas, seja passear, ir a casa de amigos ou ao supermercado.
Também não se pense que o facto de morarem em Alfama desencorajou o casal Joana Martins e Nuno Fonseca a deixarem-se conquistar pela bicicleta. Ela, professora, sobe a colina todos dias para ir dar aulas na escola D. Filipa de Lencastre, onde tanto alunos como professores “acham imensa graça” ao seu modo de transporte. “O professor de ginástica às vezes brinca comigo porque quando chove vou de transportes e ele pergunta-me sempre onde está estacionada a bicicleta.” Já ele, que trabalha numa empresa de engenharia civil, desce para chegar a Belém, onde trabalha.
Além de dar aulas, Joana também dá explicações e garante que a bicicleta se tornou no único aliado que lhe permite cumprir todos os horários.
Vencido o receio inicial de se deslocar nas ruas da cidade, Joana pediu a bicicleta emprestada ao pai, mandou arranjá-la, meteu um cesto à frente para carregar a mochila com os livros e lançou-se à estrada, logo no primeiro dia de aulas. “A primeira semana custou muito porque de Alfama até ao Arco do Cego demoro mais ou menos de 20 a 30 minutos. De Alfama até à Graça vou com a bicicleta na mão, ainda não tenho pedalada suficiente para chegar à lá cima, depois a partir daí faz todo um percurso em estrada até chegar à ciclovia da Guerra Junqueiro. No fim das aulas, os alunos a quem dá explicações vivem todos por perto “e é tudo muito fácil”.
Nuno, de 32 anos, perdeu o hábito da bicicleta quando veio estudar para Lisboa, na universidade. Mais tarde um amigo que já era um utilizador diário foi fazendo a evangelização de Nuno, que começou por lhe comprar uma bicicleta e andava ao fim de semana por Lisboa e ocasionalmente ia para o trabalho. Nessa altura lembra-se que fazia a avenida da Índia e “quando passava alguém ou apitávamos ou dizíamos olá, porque era raro”. Mas só quando Joana decidiu experimentar é que ele achou que tinha de a apoiar e começar também a praticar mais o que defendia.
De agosto a dezembro andou sempre de bicicleta. “Depois, caí”, recorda. “Fui operado, tive de levar dois parafusos na mão”, explica enquanto passa a mão direita pelo polegar esquerdo. A experiência – da qual já recuperou – não o assustou. Foi o resultado de uma combinação de fatores: muita chuva, passar uma grade metálica, à noite… Enfim, passou a ter mais cuidados. E voltou à bicicleta em março, por enquanto apenas às quintas e sextas-feiras.
Meditação em movimento
Andar de bicicleta permite a todos aproveitarem mais a cidade. Não apenas o ar livre, os cheiros, os sons, mas também parar e aproveitar “para estar com amigos numa esplanada” ou simplesmente aproveitar o final de tarde. Além de que o trajeto ajuda a desligar do dia de trabalho. Nuno Fernandes lembra-se “de um vídeo em que alguém dizia que andar de bicicleta era fazer meditação em movimento”. Não querendo levar a expressão tão longe, o estudante de doutoramento acaba por concordar em parte com ela. Já que andar de bicicleta obriga por vezes a ultrapassar “alguns medos”, como o de andar no meio da estrada, a estar consciente do gesto que se está a fazer e “ver o corpo e a bicicleta como se fossem um só”. “É uma ligação entre o corpo, a bicicleta e o espaço.” O que leva os utilizadores deste meio de transporte a percecionar a cidade de uma forma completamente diferente dos automobilistas, acredita.
No fundo, o que todos os utilizadores que falaram com o DN defendem é que optar por este meio de transporte é mais do que uma escolha meramente ambiental. Aliás, nenhum deles começou por essa razão. A conveniência é a mais referida, embora todos os outros impactos positivos, sejam muito bem vindos.
A cidade também se tem vindo a adaptar para que cada vez mais lisboetas e visitantes venham a conhecer esses impactos. Não só no crescimento de ciclovias, mas também com o aumento das bicicletas partilhadas – a rede GIRA, da EMEL. Embora ainda não seja conhecido o número de ciclistas diários na cidade (ainda não saíram os dados do inquérito à mobilidade, feito pelo INE no final de 2017), Rosa Félix partilha os números de umas filmagens que fez a propósito do seu doutoramento. “Em fevereiro de 2017 filmei no cruzamento da Duque D”Ávila com a Avenida da República, 174 pessoas a passar de bicicleta em duas horas. Em 2018, no mesmo local e no mesmo dia e hora, e desta vez passaram 466! Mais do dobro em 1 ano – muito devido à expansão da rede ciclável no Eixo-Central e às GIRA, que representaram 40% das bicicletas que passaram (que não existiam em 2017). A CML também fez um vídeo com a mesma metodologia e contou 494 (47% GIRA). Vamos ver como será em 2019.”
Início “super poderoso”
Uma mudança tão grande e em tão pouco tempo, que apesar de ter começado só em setembro, Joana já nota diferenças. “Apanho filas de bicicletas nas ciclovias, era uma coisa que não acontecia há dois anos. Estamos no início e está a ser super poderoso.” Principalmente se compararmos com o tempo em que o namorado andava na Avenida da Índia e apitava aos poucos ciclistas com quem se cruzava no caminho e que hoje, por serem mais, já não faz sentido.
Tanto que é cada vez menos estranho ver alguém que vai para o trabalho de bicicleta. “Normalmente venho pelo Calvário e estava um carro atrás de mim há imenso tempo – aqui aí não há ciclovias a gente vai no meio da estrada – e não me ultrapassava, nem deixava de ultrapassar. Às tantas encostei para ele me ultrapassar e era um aluno que me disse “não fazia ideia que o professor andasse de bicicleta” e eu respondi “é pá, todos os dias”. Isto para dizer o quê? Ele não está à espera que eu ande de bicicleta, mas também não acha estranho, porque de facto, a questão é “porque não?””, refere David Vale.
Lisboa está a abrir-se à dinâmica do uso da bicicleta, o que pode dar-lhe ganhos em termos de mobilidade, mas ainda há coisas a mudar. As ciclovias devem continuar a crescer, mas associações como a MUBi gostavam que fossem feitas nas vias, como parte da estrada, que os ciclistas tenham incentivos para a compra de bicicletas elétricas, que haja uma maior integração com os transportes públicos, para que mais permitam a entrada de bicicletas.
Num inquérito que fez no âmbito da sua tese de doutoramento, Rosa Félix aponta como dados preliminares o facto de muitos entrevistados referirem como entrave para o uso de bicicleta a falta de local para a guardar em casa. “Em Lisboa muita gente não tem um espaço para guardar uma bicicleta em sua casa, ou mora num “quinto andar sem elevador”, e isso constitui um obstáculo a deslocar-se de bicicleta – como vários estudos demonstram”, frisa. O que pode mudar se o regulamento municipal, que obriga a que sejam encontradas soluções, for aplicado, acrescenta a investigadora.
Medidas que, todos acreditam, serão postas em prática à medida que os utilizadores forem crescendo. Tal como a esperança por um maior civismo dos automobilistas em relação aos ciclistas também virá com o aumento das bicicletas nas ruas. Uma ajuda importante que está a ser dada pelo sistema partilhado GIRA. Um verdadeiro sucesso: desde setembro existem “cerca de 9000 passes ativos, 8750 dos quais são anuais”, aponta a EMEL. A empresa aproveita ainda para esclarecer que os acidentes relatados e relacionados com os travões das bicicletas elétricas não são causados por nenhuma falha de segurança. “Em quase 11 meses e mais de 280 000 viagens, foram reportados 56 incidentes, por situações tão diversas como quedas ligeiras, atravessamento de ciclovias por peões ou colisões com automóveis, tendo-se verificado ferimentos em 23 desses utilizadores.”
Contratempos que são desvalorizados pelos ciclistas regulares, como mostram os números de utilização: “Só na última semana registaram-se 20 289 viagens, um número de viagens igual ao número realizado em dois meses e meios da chamada “fase piloto””, refere a EMEL ao DN.
David Vale e António Pedro esperam que daqui a dez anos já não sejam precisas reportagens como esta, sinal de que o uso de bicicleta se banalizou. Até lá, David vai continuar a fazer as delícias das filhas com a bicicleta. “Tenho de levar uma de cada vez à escola porque elas fazem questão de chegar de bicicleta. É uma festa quando chegam, tanto para elas como para os amigos. A bicicleta é super popular.”
Publicado em https://www.dn.pt/portugal/interior/pedalar-no-dia-a-dia-tornou-se-a-forma-mais-eficiente-de-andar-em-lisboa-9401387.html a 2 Jun 2018