Entrevista com Fernando Nunes de Silva e Filipe Moura. Publicado na Mensagem, em https://amensagem.pt/2023/04/10/avenida-da-liberdade-laterais-transito-poluicao/, a 10.04.2023, por Frederico Raposo.
O trânsito nas laterais da Avenida da Liberdade vai mudar e isso está a gerar uma guerra de dados. Os sentidos vão ser invertidos e passa a ser possível percorrer toda a extensão da avenida pelas laterais, tal como acontecia antes de 2012. A mudança poderá, contudo, ter o efeito contrário ao proposto pela autarquia, conduzindo a mais trânsito e poluição. E o que pensam os comerciantes?
Foi já em 2012 – há 11 anos – que se alterou por completo a circulação na Avenida da Liberdade e na Praça Marquês de Pombal. A praça ganhava duas rotundas – que geraram muita confusão inicial – e era introduzido um novo esquema de circulação na Avenida, em círculos, pondo fim à possibilidade de a percorrer de uma ponta à outra usando apenas as vias laterais.
Os objetivos eram reduzir os níveis de poluição e o trânsito e garantir que as laterais só seriam utilizadas para procurar estacionamento e aceder às lojas e serviços locais.
Na altura, António Costa presidia à Câmara Municipal de Lisboa (CML) e foi o próprio a apresentar publicamente as mudanças aos lisboetas. Ao seu lado, estava Fernando Nunes da Silva, o então vereador com a pasta da mobilidade na cidade, cargo que exerceu entre 2009 e 2013, e um dos arquitetos por detrás das mudanças ensaiadas na altura.
O período experimental, de três meses, revelou sucesso, no entender do executivo municipal de então, e as mudanças adquiriram caráter permanente na vida da cidade.
Mais de uma década depois, o esquema dá agora um passo atrás: a circulação contínua pelas laterais ao longo de toda a extensão da avenida estará de regresso.
As obras deverão ter a duração de quatro meses, iniciando-se este mês e terminando em agosto. E serão executadas em simultâneo com as obras do Plano Geral de Drenagem a decorrer na avenida.
Além da reposição do anterior esquema de circulação, a empreitada, a cargo da EMEL, vai incluir a criação de bolsas de estacionamento para motociclos e para bicicletas. Isto apesar de o atual projeto da câmara para a avenida não prever a criação de uma ciclovia.
A guerra dos dados na Avenida
A reposição do esquema de circulação das laterais já constava dos planos do anterior executivo camarário, de Fernando Medina, mas quando foi anunciada, em janeiro de 2020, surgia enquadrada na implementação da Zona de Emissões Reduzidas (ZER) prevista para as zonas da Avenida da Liberdade, Baixa e Chiado, entretanto em suspensa.
No âmbito da ZER, previa-se a criação de uma ciclovia na Avenida da Liberdade, bem como a diminuição significativa do tráfego, prevendo-se uma diminuição da entrada de cerca de 40 mil automóveis por dia na zona baixa da cidade, que atualmente recebe 100 mil automóveis diariamente.
Mais tarde, em outubro desse ano e através de uma proposta apresentada em reunião de câmara pela então vereadora do PSD Teresa Leal Coelho voltou a desenhar-se um regresso ao passado nas laterais da Avenida da Liberdade. Os argumentos da vereadora eram o facto de se ter “aumentado o congestionamento das faixas centrais, (e não ter) o efeito anunciado pela Câmara Municipal de Lisboa no que diz respeito à redução das emissões de gases poluentes, nomeadamente de dióxido de azoto.”
Na altura, com Fernando Medina à frente da autarquia e com o PSD na oposição, a proposta assinada pela vereadora de direita colheu votos favoráveis de toda a oposição, excetuando os dois vereadores do PCP que se abstiveram na votação.
Ora continua o digladiar dos dados. Segundo a CML, os argumentos para o retroceder de agora são os mesmos que levaram às mudanças em 2012 e ao reverter em 2020.
Em setembro do ano passado, Ângelo Pereira (então vereador com o pelouro da Mobilidade) afirmava que o “retomar” dos sentidos das laterais da avenida tinha como objetivo “reduzir os níveis de poluição”.
Entretanto, a pasta trocou de mãos, passando para o vice presidente da CML, Filipe Anacoreta Correia. À Mensagem, o seu gabinete elencou os objetivos da intervenção:
“melhorar a circulação automóvel e o acesso aos locais de trabalho e comércio”
O que estava em causa em 2012
Em 2012, Lisboa enfrentava a urgência de travar um processo instaurado pela Comissão Europeia pela violação constante dos valores limite de poluentes. Era o governo português quem enfrentava o processo, mas a pressão vivia na câmara municipal.
No horizonte, recorda Fernando Nunes da Silva, estavam “sanções bastante grandes. Pagava-se à cabeça uns milhares de euros e por cada dia em que a legislação continuasse a não ser cumprida voltava a pagar-se mais”.
A multa, segundo notícia publicada no jornal Público em 2012, poderia chegar aos 1,9 milhões de euros.
O que dizem os números?
Que os níveis de poluição do ar na Avenida da Liberdade desceram nas semanas após a introdução das alterações, em 2012, e continuaram a descer nos anos seguintes. Mas não é fácil traçar uma ligação direta entre uma coisa e outra.
Já no caso do congestionamento rodoviário nas laterais, a ligação é óbvia e o especialista em mobilidade e professor catedrático em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico (IST) tem números para mostrar:
Nas horas de ponta da manhã, circulavam na faixa central da Avenida da Liberdade cerca de 1500 veículos por hora e por sentido.
Nas laterais, com apenas uma via por sentido, circulavam cerca de 400.
Na altura, as laterais eram utilizadas como alternativa à faixa central da avenida e foi isso que a CML, na altura, se propôs a mudar. Para além de tentar retirar pressão das laterais e das zonas eminentemente pedonais e próximas do comércio local, acrescia também a necessidade de reduzir a poluição naquela que é uma das artérias mais movimentadas da cidade.
E assim foi. O fluxo de automóveis nas laterais passou de 400 por hora para 50, garante o ex-vereador.
Sobre o novo/velho esquema de circulação pré 2012 e o seu regresso, “não há nenhum estudo, não há nenhum dado”, diz Fernando Nunes da Silva, que continua a defender a obra em que participou.
Voltar ao esquema anterior reduz a poluição e o trânsito?
“É completamente ao contrário”, responde Fernando Nunes da Silva.
“A minha convicção é a de que vamos regressar aos congestionamentos enormes, vamos voltar a ter concentrações de poluentes extremamente fortes. O para arranca é o pior que há para a concentração de poluentes”
Também Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista ZERO, desconfia do regresso ao anterior esquema de circulação.
“As nossas expectativas são que não se altere nada em relação ao que está ou que eventualmente até possa piorar. Ao facilitar a circulação, poderemos ter mais carros a circular. Mais carros significa mais poluição.”
Valores provisórios de 2022 relativos às emissões poluentes na Avenida da Liberdade revelam uma média diária de concentração de dióxido de azoto (NO2) de 45 µg/m3 (micrograma por metro cúbico), um valor superior ao máximo exigido na legislação de 40 µg/m3.
As multas europeias em consequência da poluição em Lisboa e noutras cidades portuguesas podem voltar a ser uma realidade em breve, assume Francisco Ferreira.
Até porque “está em discussão na UE valores limite mais reduzidos, porque a OMS concluiu que para evitar doenças e as mortes prematuras temos de descer os valores de forma muito significativa. Não tenhamos dúvidas que [os processos da UE] serão um problema sistemático com que vamos ter de lidar”.
Para o ambientalista, “é fundamental é diminuir o fluxo de tráfego no total da Avenida da Liberdade”.
“O que me surpreende é como é que Lisboa não consegue tomar quaisquer medidas em comparação com outras cidades europeias, no que respeita à redução de tráfego e aos investimentos na mobilidade ativa e na mobilidade suave. Estamos a retirar esperança de vida às pessoas que ali circulam e a responsabilidade é política.”
Filipe Moura, especialista em mobilidade e em engenharia de tráfego e docente no IST, partilha dos receios. Se o atual esquema de circulação favorece a utilização das laterais para procura de estacionamento e acesso local, o regresso ao esquema antigo vai mudar o seu uso rodoviário. “Tal como está, só é utilizado para quem lá quer chegar. Se for de outra maneira, vai ser utilizado em função da distribuição da procura. Quando o corredor central está cheio, as pessoas naturalmente irão procurar safar-se no corredor lateral – e vão entupir aquilo nas horas de ponta”, prevê.
“O tráfego é como a água. É uma questão de aprendizagem. No caso urbano, é uma questão de semanas. Não me admiraria que rapidamente as vias laterais estivessem cheias de carros que hoje não têm”
A CML tem expectativas bastante diferentes. A empreitada contempla, para além das alterações à circulação, a modernização da rede de semáforos, com a instalação “de controladores semafóricos e sensores de tráfego em cada cruzamento”.
Com as mudanças nos semáforos, a autarquia espera que “a otimização dos tempos semafóricos” possa ter como resultado “a redução dos níveis de congestionamento rodoviário”.
Filipe Moura não está tão otimista. “O que sabemos em transportes, e sobretudo em engenharia de tráfego, é que a procura tem horror ao vazio. Havendo matéria, ela vai ocupar o espaço vazio”.
A fluidez que poderá verificar-se nas primeiras semanas da alteração pode rapidamente ser substituída pelo congestionamento e pelo pára-arranca que aumenta os níveis de poluição.
“Havendo mais fluidez, vai haver mais procura. É uma lei natural do tráfego – mais capacidade, mais procura – sobretudo numa zona central da cidade”, sublinha o especialista.
As três propostas de 2012
Quando se tomou a decisão de alterar o esquema de circulação das laterais da Avenida da Liberdade, discutiram-se três propostas na câmara. Uma, “mais radical”, fora testada numa feira promovida por um retalhista e consistia no encerramento total do trânsito da faixa central, transformando este espaço da avenida num prolongamento do Parque Eduardo VII.
Nesta proposta, o trânsito circularia apenas nas laterais. A experiência, de um dia apenas, não correu bem. A incapacidade das laterais acomodarem a totalidade do volume de tráfego da avenida – sem quaisquer restrições de circulação e com a manutenção de estacionamento ao longo destas vias – foi, segundo Fernando Nunes da Silva, evidente, o que terá levado a que a proposta fosse colocada de lado.
A segunda opção previa a ligação dos passeios da avenida aos dois passeios arborizados da placa central, retirando a circulação das laterais e passando o estacionamento para a faixa central, que teria de acolher ainda as vias dedicadas a transportes públicos e o trânsito automóvel. O espaço disponível na faixa central, apesar de generoso, não garantiria o fluxo necessário para o volume de tráfego da altura sem colocar em causa a existência dos corredores dedicados ao transporte público – as vias BUS.
A terceira opção foi a escolhida. “Deixava a faixa central como está e nas laterais invertia-se o sentido, para que deixassem de funcionar como suplemento de capacidade da faixa central e passassem a funcionar como ruas de acesso local”. Para que assim fosse, a circulação nas laterais perderia o seu fluxo contínuo pela avenida, de cima a baixo e de baixo acima. Foi assim que aconteceu.
De quarteirão a quarteirão, com algumas exceções, os condutores são hoje obrigados a entrar nas ruas perpendiculares ou a regressar à faixa central. O resultado é simples. Só lá entra quem verdadeiramente precisa e até a disponibilidade de estacionamento aumentou, pelo menos como garante Fernando Nunes da Silva.
E o comércio?
Antes de 2012, “as laterais da Avenida da Liberdade funcionavam fundamentalmente como suplemento de capacidade da faixa central”, afirma Fernando Nunes da Silva.
“Na primeira fase, seguimos o modelo que existe em Paris em praticamente todas as avenidas boulevards que têm estas laterais. Este tipo de esquemas de circulação em avenidas largas com laterais é uma medida que é praticada com alguma frequência, porque é simples de aplicar, e porque desincentiva completamente as pessoas que não se dirigem exatamente àquelas zonas”.
No início, houve desconfiança dos comerciantes e moradores, que foram convocados a participar em várias reuniões de discussão e apresentação das alterações.
Foi o mesmo quando o município decidiu fazer da Rua Augusta uma artéria pedonal, em 1984. Na altura, Krus Abecassis foi muito criticado e choveram vaticínios de que o comércio ia desaparecer todo, que seria uma desgraça.
Pouco depois, a perceção dos comerciantes terá mudado por completo. “Ao fim de um ano daquilo estar a funcionar, os comerciantes da Rua da Prata e da Rua do Ouro foram bater-lhe à porta, na Câmara Municipal de Lisboa, a dizer que estavam a ser discriminados e prejudicados porque não tinham ruas de peões”.
Numa das discussões na AML sobre a ZER, em 2021, foi citado o Diário Popular de 28 de julho de 1984, que, rendido à mudança, escrevia:
“Percorrer a Rua Augusta do Arco ao Rossio, sem ter necessidade de sentir má vizinhança dos automóveis em disparada à procura do sinal verde, ou o som irritante das buzinas quando o trânsito engarrafa já não é um sonho. A Rua Augusta já não tem automóveis, é só dos peões desde a manhã de hoje. Foi a reformulação do trânsito da Baixa, foi o restituir de uma pequena parcela da cidade a quem nela vive, uma vitória do homem sobre a máquina”
in Diário Popular
Precisamente segundo o ex-vereador, a forma como o trânsito na Av. da Liberdade fluía antes das alterações de 2012 “prejudicava imenso” o comércio. “Não foi por acaso que os comerciantes da zona, os hotéis, os restaurantes e escritórios, depois da experiência concordaram imediatamente com a manutenção do esquema, com umas correções que foram feitas”, afirma.
Filipe Moura também teme impactos negativos para o comércio local. “Não me admiraria também que hotéis e comerciantes venham a ficar insatisfeitos porque vão demorar mais tempo a alcançar o seu destino”.
A Associação da Avenida da Liberdade, que tem como associados dezenas de lojas, empresas e hotéis com morada na avenida e ruas envolventes, avalia o regresso ao antigo esquema de circulação “de forma bastante positiva” e realça a existência de “uma comunicação muito regular com a junta de freguesia [de Santo António]”.
Rita Silvério Marques, diretora executiva da associação, considera que o esquema de circulação existente nas laterais antes de 2012 “era de compreensão bastante mais fácil” e sublinha dificuldades no esquema atualmente em vigor, já que, afirma, “algumas zonas funcionavam quase como uma ilha, parecia que não havia acesso”.
Apesar de constatar uma opinião dos comerciantes “globalmente muitíssimo positiva”, Rita Silvério Marques não esconde que alguns comerciantes da avenida “estão com algum receio de que [as alterações] façam com que haja um pouco mais de excesso de trânsito”.
O que ficou por fazer, e o que será feito (ou não)
Em 2012, o projeto previa obras que nunca chegaram a acontecer.
Os balizadores de plástico ficaram do período experimental. A borracha seria, de acordo com o projeto original, algo temporário. Mas dura até hoje, mais de uma década depois.