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Tirar espaço ao carro nas cidades portuguesas? Vai ter de ser devagar e ouvindo todos

Entrevista com Filipe Moura. Publicado no Público, em https://www.publico.pt/2025/12/03/local/noticia/tirar-espaco-carro-cidades-portuguesas-vai-devagar-ouvindo-2156705, a 03.12.2025.

Jonas Augustin

Tirar espaço ao carro nas cidades portuguesas? Vai ter de ser devagar e ouvindo todos
Estudo propõe soluções de “realocação temporária” do espaço ocupado por automóveis como forma de tornar ruas “mais seguras, equitativas e eficientes”. Envolver comunidade deve ser sempre a regra.


A constatação está longe de ser nova. A generalidade dos portugueses tem uma enorme resistência a que retirem espaço ao automóvel dentro das cidades. Uma vez conquistada uma área para circulação e estacionamento, torna-se difícil aos decisores políticos avançarem com uma redução sem que ela provoque contestação. E apesar das tentativas da generalidade dos municípios nacionais nas últimas duas décadas em reverter tal cenário, muitas áreas urbanas novas continuam a ser construídas a pensar sobretudo no carro.

O resultado é uma sensação geral de que as ruas são desconfortáveis e inseguras. Mas tudo isso pode ser diferente, se se fizerem mudanças claras na forma como se decidem e se comunicam as alterações feitas no espaço público para dar mais espaço aos peões e aos meios de mobilidade suave, como as bicicletas. Isto é o que sugere um novo estudo feito em conjunto por investigadores do Instituto Superior Técnico (IST), da Universidade de Lisboa, e da Universidade de Coimbra, a ser apresentado esta semana.

Uma das melhores formas de conseguir essas mudanças pode passar por experimentar utilizações alternativas temporárias das muitas faixas de rodagem e lugares de estacionamento existentes nas cidades nos momentos em que eles têm menos utilização. Porque não instalar nessas áreas, durante algumas horas ou até dias, esplanadas, bancas de venda ou zonas de lazer?

Através de uma estratégia gradual, poder-se-ia alcançar o objectivo de ir conquistando espaço nas cidades portuguesas para outros usos que não o automóvel. Mas, para isso acontecer, há que envolver sempre as pessoas que vivem e trabalham nos sítios em que se pretende levar a cabo as alterações, sustenta o mesmo estudo.

“Há que perceber o ar dos tempos. A experiência factual e científica de que estas mudanças são boas já não é suficiente para muita gente. Por isso, não há nada como chamar as pessoas a participar no processo de mudança”, diz ao PÚBLICO Filipe Moura, professor de sistemas de transportes do departamento de engenharia civil do IST e responsável pela coordenação do projecto de investigação Streets4All. Ou seja, rua para todos. “O envolvimento da comunidade é fundamental”, salienta o académico.

O estudo universitário, lançado a pensar na procura das melhores formas para que as cidades portuguesas “avancem rumo a ruas mais seguras, equitativas e eficientes”, decorreu durante cinco anos. E testou a utilização de ferramentas de inteligência artificial (IA) para ajudar a desenhar soluções com esse objectivo. Os resultados serão divulgados no seminário de encerramento, a decorrer esta sexta-feira, no edifício Caleidoscópio da Universidade de Lisboa.

“Todos sentimos que falta espaço nas cidades. Mas, afinal, e se ele já estiver? Se calhar, poderíamos experimentar a realocação temporária da imensa infra-estrutura viária existente e dar-lhes outros usos, durante as horas em que ela não estivesse a ser utilizada pelos carros. Ou seja, fora da hora de ponta”, diz Filipe Moura, dando conta do pressuposto inicial da investigação. “Há espaço para se estabelecer um compromisso entre as várias funções da cidade, sem abdicar do uso do carro”, garante.

Soluções à medida

E isso pode significar, por exemplo, a transformação de parte de uma avenida em que existem três faixas de rodagem em cada sentido num local com funções bem mais diversas, ao longo de um dia ou até num período mais alargado. As esplanadas criadas durante a pandemia em muitas zonas de Lisboa, em lugares antes ocupados por estacionamento, são disso um bom exemplo, nota o investigador. E que, afinal, até podem ser replicadas em maior escala.

Mas também o são o caso da Feira do Relógio, que se realiza todos os domingos de manhã, na Avenida de Santo Condestável, em Marvila. O trânsito é ali cortado nesse período, sendo depois retomado. O mesmo pode ser visto na Feira da Ladra, que decorre no Campo de Santa Clara, aos sábados e às terças-feiras, durante quase todo o dia, obrigando à supressão da circulação e estacionamento automóveis nesses momentos.

Esses são bons exemplos e já amplamente conhecidos na capital portuguesa. Mas por que não expandir essa abordagem para outras zonas? Não só de Lisboa como das outras cidades portuguesas. Foi com essa ideia em mente que os responsáveis pelo estudo, que envolveu a colaboração entre engenharia, urbanismo, ciência de dados e participação dos cidadãos, ao longo de cinco anos, decidiram criar uma estratégia para aplicar a qualquer sítio.

Para além das hipóteses relacionadas com a utilização das faixas de rodagem e de lugares de estacionamento como lugares de esplanadas de cafés e restaurante ou mercados, propuseram-se também outras soluções temporárias. É o caso da conversão de faixas de rodagem, em determinados momentos, em ciclovias ou até em faixas BUS. E depois realizaram-se simulações, para testar a aceitação das mudanças por parte das pessoas.

O que foi feito com a ajuda de uma ferramenta informática, baseada em IA, que pode ser aplicada a todos os locais “onde haja complexidade e conflitualidade”. Ou seja, zonas com elevada densidade populacional, grande diversidade de usos e alta conectividade com a rede de transportes. Dito de outra forma, em territórios vincadamente urbanos.

Mas é uma abordagem sempre a olhar para a especificidade de cada local. “Nem todos os espaços devem ter soluções iguais”, avisa Filipe Moura. As soluções têm de ser à medida.

Para ajudar a construir essa ferramenta, que poderá ser incorporada no desenho de soluções inovadoras do espaço público, optou-se por duas linhas de trabalho. Por um lado, analisou-se o caso concreto da Rua Morais Soares, em Lisboa, conhecida pela grande densidade comercial e dificuldade de circulação dos peões. Por outro, foi realizado um questionário online (188 pessoas, de 24 países), focado no estudo de preferências visuais sobre intervenções de alteração no espaço público.

A análise dos dados revelou que as mudanças visuais — fossem a cor, a luz ou a organização do espaço — têm um grande peso na forma como o público aceita ou rejeita uma intervenção. Ou seja, o que este estudo mostrou foi que “a esmagadora maioria das pessoas gostou das soluções propostas para recuperação do espaço público, sobretudo quando a percebem como uma coisa arrumada”, nota Filipe Moura.