Entrevista com Filipe Moura. Publicado no Expresso, em https://expresso.pt/sociedade/2025-05-16-todos-os-dias-entram-em-lisboa-390-mil-carros-capital-vai-em-sentido-contrario-as-maiores-cidades-europeias-alertam-especialistas-81b21b72, a 16.05.2025, por Carla Tomás, Raquel Albuquerque e Jaime Figueiredo.

Maiores aumentos estão nas entradas com origem na Margem Sul, Loures, Odivelas e região Oeste. Câmara Municipal de Lisboa não tem dados. Especialistas pedem política de estacionamento “clara”
O número de carros a entrar diariamente em Lisboa aumentou nos últimos anos. São agora cerca de 390 mil: mais 20 mil do que em 2017, quando foi divulgada a última contabilização a partir dos relatórios de tráfego do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT). Quase todas as entradas na capital estão agora mais entupidas, mas os maiores aumentos são na Ponte Vasco da Gama, IC16 e A8 — os acessos usados por quem fugiu de Lisboa para a Margem Sul, Loures, Odivelas ou região Oeste à procura de casas e rendas mais baratas. Este aumento de tráfego levanta preocupações entre os especialistas, não só pelo impacto na saúde, qualidade do ar ou velocidade de circulação dos transportes públicos, mas também por verem Lisboa a caminhar no sentido contrário a outras capitais europeias.

ENTRADA DE CARROS EM LISBOA POR DIA
Média diária, num só sentido
“Os números mostram uma tendência crescente de entrada de veículos na cidade e provam que ainda não se arranjou uma solução para estancar esse fluxo. Diria até que o número é mais alto, rondando os 450 mil, a ver por outros dados apresentados no Plano Metropolitano de Mobilidade Urbana Sustentável”, afirma Filipe Moura, professor em Sistemas de Transportes no Instituto Superior Técnico. “Isto acontece porque há mais pessoas a viver longe do trabalho devido aos problemas de habitação em Lisboa e essa dispersão não teve uma resposta eficaz dos transportes públicos.”
“Utiliza-se o espaço público como se fosse privado. É uma má política e anacrónica”, critica Filipe Moura
A mesma explicação é apontada por Fernando Nunes da Silva, especialista em transportes e ex-vereador da Mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa (CML): “Nos últimos 30 anos houve alterações profundas, com perda de população para outras localidades e os empregos a manterem-se na cidade.” O crescimento metropolitano fez subir as entradas de carros “sem o devido investimento nos transportes coletivos e até com desinvestimento nos transportes suburbanos”. Toda esta expansão foi feita com base em grandes infraestruturas rodoviárias e sem que exista articulação entre as diferentes entidades responsáveis pelos transportes públicos. “Ter uma área metropolitana de transportes gerida por dezenas de entidades é caso único na Europa. É impossível que funcionem bem quando são geridos de forma corporativa e feudal”, frisa Nunes da Silva. E defende que “é preciso acabar com as capelinhas, articular os vários modos de transporte (comboio, barco, autocarro, metro) e retirar da gaveta o Observatório da Mobilidade”.
Câmara não tem números
A autarquia diz não ter dados que “levem a concluir que existe um aumento de tráfego”, já que não sabe quantos carros entram diariamente na cidade. No entanto, indica que está “em curso” o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável, onde será incluída essa informação. O gabinete de Carlos Moedas aponta como último dado a entrada de 370 mil carros em Lisboa, citando o estudo “Lisboa: o Desafio da Mobilidade”, de 2003/2004. Contudo, este número consta de uma análise mais recente, divulgada pelo executivo de Fernando Medina, com base nos relatórios de tráfego do IMT de 2017, que são publicados trimestralmente. “Estávamos a preparar a descida do preço dos passes, que resultou da cimeira das áreas metropolitanas, e era preciso um número para depois perceber o impacto da medida”, recorda Miguel Gaspar, então vereador da Mobilidade.
TOTAL DIÁRIO DE ENTRADAS
Média diária, num só sentido
PONTE 25 DE ABRIL
Média diária, num só sentido
Ponte Vasco da gama
Média diária, num só sentido
A8
Média diária, num só sentido
IC16
Média diária, num só sentido
A medida permitiu aumentar 25% a utilização de transportes públicos e reduzir ligeiramente o total de entradas para 368 mil, com mais impacto na Ponte 25 de Abril, mas a quebra durou pouco tempo. Refazendo agora o cálculo a partir dos dados do IMT relativos ao 2º trimestre de 2024, conclui-se que, à exceção do IC19, todas as entradas da cidade têm mais veículos. Na Ponte Vasco da Gama o aumento é de 20%, no IC16 supera os 30% e na A8 é de 10%. No entanto, é da Ponte 25 de Abril, A5 e IC19 que vem o maior fluxo. Fora da contagem, por não constar nos relatórios, fica a Marginal. “É interessante, porque os corredores que já estavam mais congestionados na hora de ponta cresceram pouco, mas os que estavam menos carregados cresceram mais”, resume Miguel Gaspar.
Semáforos e TVDE
O aumento de carros “não justifica o pandemónio em que se transformou o trânsito em Lisboa”, sublinha Nunes da Silva. Para o especialista, “o problema principal é a adoção de um sistema de gestão de semáforos que não escoa o tráfego dos eixos principais e faz o trânsito acumular-se”. E por isso defende a sua reprogramação. Também considera que o aumento de TVDE pode ter peso no agravamento da situação atual, já que estes veículos “representam entre 15% e 20% dos carros e, ao contrário dos táxis, estão em circulação permanente”, sugerindo um estudo para encontrar soluções. Defende ainda “a criação de autocarros escolares para levar as crianças à escola como forma de tirar milhares de carros das ruas, como se verifica durante as férias escolares”.
No total, juntando aos carros que vêm de fora os dos residentes, estima-se que haja 700 mil veículos a circular em Lisboa. “Se cada um ocupar em média 12,5 m2, estamos a falar de áreas absurdas. É a utilização do espaço público como se fosse privado. É uma má política, é anacrónica e é contra tudo o que se faz noutras cidades”, critica Filipe Moura. “É importante que se defina uma política de estacionamento coerente e clara sobre o que se pretende, que neste momento não se percebe o que é.”
Lugares na via pública explorados pela EMEL
Média diária, num só sentido
LUGARES em parques explorados pela EMEL
Em Paris, por exemplo, a aposta é acabar com 10 mil lugares de estacionamento (10% do total) e em Amesterdão tirar 11 mil lugares e aumentar o preço do estacionamento no centro para €8 por hora. Já em Lisboa, a EMEL anunciou mais 9 mil lugares até 2027, que se juntam aos 102 mil existentes na via pública e aos 6300 em parques. Nas zonas periféricas da cidade há seis parques dissuasores (Colégio Militar, Avenida de Pádua, Ameixoeira, Telheiras Nascente, Telheiras Poente e Azinhaga da Cidade-Lumiar), aos quais se acede com o passe Navegante. Além disso, em zonas não reguladas pela empresa municipal existem mais 81 mil lugares à superfície e 85 mil em parques. Embora a EMEL veja o estacionamento como “instrumento” para “retirar viaturas do espaço público e devolver a cidade aos cidadãos”, não esclarece porque é que se criam parques subterrâneos com poucos lugares para residentes em zonas centrais, como o da Avenida 5 de Outubro, no qual só 60 em 460 são para residentes.
Nunes da Silva defende para Lisboa o que se faz em Paris, “onde as empresas que exploram os parques subterrâneos também exploram os de superfície, com a condição de os subterrâneos serem para os residentes e com tarifas reguladas, enquanto à superfície os preços podem ser mais altos e com duração máxima de duas horas”. Para Filipe Moura, a criação de mais 9 mil lugares de estacionamento na cidade não é um problema se “surgirem numa lógica virada para os residentes”, retirando os lugares da via pública. “A quantidade de veículos estacionados ilegalmente durante a noite é reflexo da falta de lugares para residentes”, diz, defendendo também uma subida do valor dos dísticos a partir do segundo carro.
Média anual de emissões poluentes
Microgramas/m3
Outra das preocupações é a atribuição de estacionamento gratuito a veículos elétricos, sejam ou não residentes. Os pedidos de dísticos verdes aumentaram 400% (de 7800 em 2021 para 31.200 em 2024), sendo a maioria de não residentes. Apesar de serem já mais de 22% dos lugares tarifados, a EMEL indica que “não está no horizonte terminar esta isenção”. Para a CML, este crescimento é “uma das medidas de sucesso deste executivo”.
Ainda que o aumento de carros elétricos tenha vantagens ambientais, não resolve o congestionamento nem a ocupação do espaço público. Para os especialistas em mobilidade, a solução continua a estar numa aposta real em transportes coletivos. “É preciso uma rede de autocarros complementar ao metro e comboio, sem supressões nem intervalos de 40 ou 50 minutos entre autocarros. Isso não é aceitável”, frisa Filipe Moura. Segundo Nunes da Silva, continua “a faltar ao município visão política e sensibilidade para resolver os problemas da mobilidade”.