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Três em quatro utilizadores de trotinetas e bicicletas não usam capacete. Deveriam?

Entrevista com Rosa Félix. Publicado no Público, em https://www.publico.pt/2025/06/23/local/noticia/tres-quatro-utilizadores-trotinetas-bicicletas-nao-usam-capacete-2136405, a 23.06.2025.

João Reguengos

Três em quatro utilizadores de trotinetas e bicicletas não usam capacete. Deveriam? Associação que apoia pessoas com dano cerebral adquirido tem feito da obrigatoriedade de protecção uma bandeira. Quem estuda mobilidade diz que principal problema são os carros e o desenho das ruas.


A Associação Novamente, que presta apoio a pessoas com dano cerebral adquirido, fez uma análise sobre a utilização de capacete em velocípedes em Lisboa e no Porto. Num exercício levado a cabo entre Março e Abril deste ano, e em que foram contabilizados 306 utilizadores de bicicletas e trotinetas, a Novamente concluiu que apenas 26% usam capacete. Isso é necessariamente mau? Depende a quem se dirige a pergunta.

A contagem nas duas principais cidades portuguesas é uma forma de voltar a pôr em cima da mesa um assunto que a associação tem promovido, mas que está longe de ser consensual: a obrigatoriedade da utilização do capacete entre alguns dos utilizadores mais vulneráveis da rua.

Entre quem estuda as questões da mobilidade urbana, são mais as vozes que opõem à medida, notando que, se a principal fonte de risco são os condutores e os automóveis, é aí e no desenho da rua que se deve intervir, mas décadas de estudos não ajudaram a encerrar o debate que regressa de tempos a tempos.

Já em 2023, a Novamente tinha lançado uma petição pela obrigação do uso desta protecção em trotinetas, documento esse que chegou a entregar na Assembleia da República. O assunto, explica Vera Bonvalot, da direcção da associação, mereceu a atenção dos deputados, que estavam a trabalhar num diploma que incluía a obrigatoriedade também em bicicletas. Entretanto, primeiro caiu o Governo de António Costa, o que travou o processo, depois veio o primeiro Governo de Luís Montenegro, que também não foi dos mais longevos.

Agora, quer retomar a discussão. “O capacete é fundamental. Não evita o acidente, mas evita tantos outros problemas em caso de acidente”, diz, em declarações ao PÚBLICO, mostrando-se particularmente preocupada com os relatos de sinistros que envolvem trotinetas e com os dados de feridos graves, que muitas vezes são secundarizados.

Lembra que, em muitos casos, os feridos graves são pessoas que terão problemas de perda de memória, de perda de visão, ou de mobilidade, que passarão por múltiplas cirurgias e por um processo prolongado de reabilitação com impacto nas famílias e nos respectivos rendimentos.

O especialista em mobilidade urbana Mário Alves partilha a preocupação com os efeitos da sinistralidade, mas discorda da solução da associação. O assunto é complexo, mas, de certa forma, colocar o foco nos capacetes é deslocar a discussão, entende. “Se reduzíssemos a velocidades limite na cidade para 30 km/h, iríamos salvar imensas pessoas de traumatismos cranianos”, diz. “Seria uma medida que salvaria muito mais vidas que o capacete.”

A própria Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) sublinha que reduzir o limite de 50 km/h para 30 km/h dentro das localidades faz com que a probabilidade de um atropelamento resultar em morte passe de 90% para 10%.

A redução da velocidade não teria apenas impacto nos velocípedes, mas também em quem anda a pé. Em 2023, houve 109 peões mortos e 350 feridos graves, de acordo com os números da ANSR. Muitos atravessavam passadeiras ou circulavam por passeios e bermas.

Mário Alves, que é também presidente da associação Estrada Viva, já escreveu textos nos quais, de forma irónica, defende a obrigatoriedade do uso de capacete para peões, como forma de resolver o problema dos atropelamentos.

Lembrando que quem circula dentro dos automóveis também está sujeito a traumatismos cranianos em caso de sinistro, num registo menos satírico, o urbanista Mikael Colville-Andersen chegou a sugerir que os condutores dos carros também deveriam usar capacete.

Duas pequenas rodas

Discutir a obrigatoriedade de utilização de protecção em trotinetas ou em bicicletas não é a mesma coisa. Teresa Bonvalot refere que o foco, para já, está nas trotinetas, que representam um desafio com características específicas nas cidades portugueses. Os relatos de médicos que estavam entre os primeiros subscritores da petição de 2023 também indiciam que as lesões provocadas por quedas em trotinetas estavam a fazer-se notar nos serviços de urgência pela sua gravidade.

As empresas de micromobilidade entraram em força em Portugal na última década, com o aluguer destes pequenos veículos eléctricos, ainda que tenha havido uma retracção com a pandemia e que algumas autarquias tenham tentado regular a sua utilização e presença no espaço público.

“Mas o tipo de utilizadores e de utilização tem gerado muitos acidentes”, comenta a responsável. Neste ponto, Mário Alves concorda: o tamanho das rodas e o uso inadequado (comportamentos de risco e consumo de álcool) podem ser parte da explicação para um elevado número de sinistros.

Perante questões de segurança, Paris foi a primeira cidade europeia a banir estes veículos partilhados das suas ruas, em 2023. A Novamente não pede tanto, considerando que seria suficiente que os operadores exigissem a utilização de capacete para desbloquear as trotinetas, como já acontece noutros países.

Também a investigadora do Instituto Superior Técnico Rosa Félix considera que ainda é cedo para se falar em proibição. Em 2023, juntamente com os também investigadores do Técnico Mauricio Orozco-Fontalvo e Filipe Moura, publicou um artigo académico no qual era avaliado o impacto socioeconómico das trotinetas em Lisboa.

Nele, conclui-se que há claros benefícios socioeconómicos ligados à utilização das trotinetas, mas calcula-se que o impacto negativo da sinistralidade rodoviária desequilibre a balança.

Desde os primeiros anos em que as trotinetas surgiram, as coisas não estão iguais. Há mais pessoas com a sua trotineta, em vez de recorrerem ao aluguer. Estes utilizadores estão mais experientes, o que reduz o risco de queda ou colisão. E olhando para os números das vítimas na rua, sublinha Rosa Félix, veículos como automóveis ou motociclos provocam “muito mais sinistros”.

Sinistralidade aumenta, mas

Ainda assim, a responsável da Associação Novamente está particularmente preocupada com a subida das colisões e despistes que envolvem trotinetas e bicicletas nos últimos anos. Em 2024, a PSP registou nas suas zonas de actuação 1658 sinistros com vítimas, que provocaram quatro mortos, 72 feridos graves e 1677 ligeiros. Só nos primeiros quatro meses deste ano, foram 623 sinistros com 16 feridos graves.

Mas os números não traçam um quadro completo. Mesmo mostrando um aumento geral de sinistros que envolvem velocípedes e trotinetas nos últimos anos, dizem pouco sobre quem os provocou. Num recente balanço de uma operação de fiscalização destes modos de mobilidade, a PSP notou que estes sinistros “ocorrem muitas vezes devido a comportamentos da responsabilidade de condutores de outro tipo de viaturas”, na maioria automóveis.

Num relatório de 2024 sobre ciclistas e segurança rodoviária, a Comissão Europeia notava que estes são um “elo vulnerável” do trânsito (principalmente quando em situação de colisão com veículos motorizados de uma tonelada, como são os carros privados) e que este é o único grupo de utilizadores da estrada que não tem visto diminuído o número de vítimas mortais desde 2010. “Os acidentes mortais com ciclistas envolvem maioritariamente veículos a motor, representando cerca de 70% do total”, lê-se no documento.

Noutro relatório temático da Comissão Europeia, este sobre as causas de sinistros mortais, consta que o excesso de velocidade é um dos principais factores (cerca de 30%). O consumo de álcool surge logo de seguida (perto de 25%), sendo que a manipulação do telemóvel ao volante também é um problema.

Ciclovias seguras e segregadas ou ruas desenhadas para que o carro reduza a velocidade são soluções que já deram prova nos casos onde foram implementadas. A literatura científica sugere que estas medidas não só têm impacto na segurança de quem já utiliza modos activos para se deslocar, mas tem também efeito de aumento do número de utilizadores.

Os trajectos de Lisboa e Porto nos últimos anos mostram isso mesmo. A capital tem investido na sua rede ciclável, e o número de utilizadores disparou; no Porto, onde há apenas alguns troços de ciclovia e o investimento foi escasso, há mais utilizadores, mas a subida não foi tão expressiva. O levantamento feito pela Associação Novamente também oferece pistas: “De acordo com os dados observados, no Porto há mais utilizadores com capacete (45%) do que em Lisboa (apenas 7%)”. Num ambiente mais hostil, é normal que quem anda na estrada procure proteger-se mais. É uma questão de percepção de segurança.

Uma questão de saúde?

“Se perdermos as trotinetas, a saúde da sociedade não perde muito. Se começarmos a perder utilizadores de bicicleta por causa da utilização dos capacetes, a sociedade perde muito mais”, avisa Mário Alves.

Há vários factores a ter em conta na decisão de fazer da bicicleta um modo de transporte, explica Rosa Félix, cuja tese de doutoramento foi sobre motivações e barreiras à utilização deste meio na capital.

Há questões importantes como o espaço para guardar a bicicleta, ter dinheiro para a comprar, a possibilidade de a poder articular com transportes públicos ou a simples oportunidade de aprender a pedalar. A existência de trajectos seguros para pedalar tem bastante peso e a obrigatoriedade de utilização do capacete também poderia ser enquadrada nesta lista.

O caso australiano, onde foi implementada a obrigação de utilização sugere isso mesmo, assinala Mário Alves: com a nova exigência a entrar em vigor nos anos 1990, o número de utilizadores diminuiu em adultos e crianças. Houve alguns ganhos em segurança rodoviária nesses anos, mas podem estar associados a outras medidas adoptadas na mesma altura.

Nos antípodas do exemplo da Austrália estão os Países Baixos, onde a utilização de bicicleta é generalizada, a esmagadora maioria das pessoas pedala com a cabeça a descoberto e as taxas de sinistralidade são das mais baixas da União Europeia.

E mesmo que vários estudos indiquem que o uso do capacete reduz a severidade das lesões cranioencefálicas em caso de sinistro, esses não são os únicos indicadores a ter em conta nesta discussão.

Por ser um modo activo, o uso da bicicleta ajuda a prevenir vários problemas de saúde associados ao sedentarismo. Os benefícios para a saúde ultrapassam largamente os riscos (dependendo do estudo, a proporção varia, mas é sempre positiva). A essas, acresce o saldo social e ambiental positivo.

O uso do capacete não tem impacto apenas no comportamento de quem pedala, mas também no de quem vai ao volante. Em 2007, Ian Walker, professor no departamento de Psicologia da Universidade de Bath, concluiu que, em média, ao ultrapassar, os condutores passavam “significativamente mais perto” dos ciclistas que levavam protecção na cabeça.

Na publicação City Cycling, o também professor na Universidade de Bath, mas de Saúde Pública, Harry Rutter lembrava que andar de bicicleta “não é intrinsecamente perigoso, apesar de o parecer, por causa dos riscos de lesão grave ou morte provocados por condutores”. Ou seja, os maiores perigos estão no comportamento dos condutores, que controlam o veículo com maior capacidade de provocar danos, e no desenho das ruas.

Não seria mais eficaz intervir aí? Vera Bonvalot responde com o que “é mais urgente e possível” e sublinha que, em “caso de acidente”, o capacete é importante. Há também um número não residual de acidentes que não envolvem outros veículos e a protecção seria uma forma de minorar os impactos de uma eventual queda, diz.

A discussão vai continuar.