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A revolução da bicicleta está a acontecer: para onde queremos ir?

Artigo de Filipe Moura e Rosa Félix, publicado no Le Monde Diplomatique – versão Portuguesa, edição de Fevereiro 2022. Excerto em: https://pt.mondediplo.com/2022/02/a-revolucao-da-bicicleta-esta-a-acontecer-para-onde-queremos-ir.html

Os debates sobre a mobilidade urbana, desde logo na Área Metropolitana de Lisboa (AML), têm dado origem a muitos antagonismos e revelado até entraves à comunicação entre diferentes sectores sociais. No entanto, muitos dos defensores do maior uso da bicicleta, com todas as transformações que isso implica, estão também atentos à necessidade de olhar de forma integrada, e complementar, para a mobilidade. Entre a valorização dos circuitos pedonais e uma aposta séria nos transportes públicos colectivos e integrados, a bicicleta procura um espaço que beneficie a todos.

Edis One. Rostos do Muro Azul (2013). Créditos fotográficos: José Vicente | CML | DPC | 2013

A bicicleta é um elemento incontornável na definição de políticas de mobilidade urbana no futuro das cidades que queremos mais sustentável. A substituição de uma viagem de carro (não-eléctrico) por uma bicicleta reduz cerca de 200 gramas de dióxido de carbono. As restantes vantagens da bicicleta são frequentemente enumeradas, beneficiando quem pode e decide optar por estes modos (mais exercício físico, menores custos de mobilidade, entre outros), mas também os restantes cidadãos de forma indirecta (menos poluição, menos ocupação do espaço público por automóveis, entre outros). Não é nem será a única solução para resolver os problemas da mobilidade urbana. Com o crescimento e densificação das cidades, o planeamento dos sistemas de transportes urbanos tem de estar alicerçado em transportes públicos eficientes e atractivos para as distâncias médias e mais longas e privilegiar os modos activos (andar a pé e bicicleta) para as distâncias mais curtas. Não se trata de banir a utilização do automóvel privado do centro das cidades, mas antes reduzir a sua necessidade, oferecendo uma diversidade de oferta competitiva, atractiva, eficaz e acessível a todos. A transição do actual paradigma assente no automóvel particular para um modelo mais sustentável terá avanços e recuos como qualquer processo de mudança, embora seja desejável que decisões políticas tenham consequências duradouras, para as próximas gerações, fugindo à lógica eleitoralista de resultados em ciclos de quatro anos. Temos de decidir colectivamente que futuro queremos para as nossas cidades, dando voz a todos os que queiram participar, incluindo as gerações dos que não votam e sofrerão as consequências (positivas ou negativas) dos que podem decidir ou influenciar as decisões, hoje.

A bicicleta e o sistema de mobilidade urbana

Já conhecemos os desafios da mobilidade urbana — são os mesmos de antes da pandemia do SARS-Cov-2. Atropelamentos mortais inaceitáveis (3711 atropelamentos por ano, dos quais 61 resultaram em morte. em 2020), mortes prematuras excessivas provocadas pela exposição dos cidadãos a poluentes atmosféricos provenientes predominantemente do tráfego rodoviário movido a combustíveis fósseis (mais de 5000 mortes por ano. em 2019), contribuição expressiva para as alterações climáticas pela emissão de gases com efeito de estufa (mais de 70% das emissões ocorrem nas cidades ), baixa qualidade de vida por exposição a níveis de ruído excessivos, ocupação excessiva do espaço público por infra-estruturas que privilegiam o automóvel, falta de equidade no acesso a opções de mobilidade, entre outros.

Apesar das expectativas de mudança durante os últimos dois anos de pandemia (por exemplo, a redução visível do tráfego motorizado nas horas de ponta por via do teletrabalho), os padrões de mobilidade dos residentes da Área Metropolitana de Lisboa (AML) teimam em não mudar. Segundo o último inquérito à mobilidade na AML, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) antes da pandemia, em 2017. 58% das viagens foram realizadas em automóvel particular. Menos de 20% recorreram aos transportes públicos e as viagens em bicicleta foram incipientes (menos de 1%). Relembramos que na década de 80 do século passado, mais de 60% das viagens pendulares eram asseguradas por transportes públicos. Em Dezembro de 2021, os relatórios de mobilidade facultados pela Google ou pela Apple revelam que os níveis de mobilidade em automóvel privado regressaram ou ultrapassaram os valores de referência de Janeiro de 2020. Por outro lado, as viagens em transportes públicos ainda não recuperaram os números pré-pandemia que tinham atingido níveis animadores depois do «choque tarifário» que veio reduzir drasticamente o custo e facilidade de utilização destes modos colectivos de transporte, em todos os municípios das áreas metropolitanas.

Também sabemos como chegámos a esta situação. Desde meados do século passado, as cidades foram sendo planeadas e transformadas para facilitar a utilização do automóvel como garante da mobilidade dos cidadãos, ou seja, criando a expectativa de minimização do tempo e custo de cada viagem, oferecendo o conforto da total disponibilidade do veículo (para quem pudesse adquiri-lo). Associado à expansão da rede rodoviária com elevada capacidade (vias rápidas a rasgar as cidades) e de estacionamento barato no centro, a disponibilidade das famílias para pagar os custos de propriedade do automóvel aumentou a taxa de motorização nas cidades de cerca de 250 veículos por 1000 habitantes, na década de 80 do século passado, para mais de 500 veículos por 1000 habitantes, hoje. Note-se que 100% de disponibilidade de um automóvel novo de gama média custa cerca de 300 a 400 euros por mês para estar parado mais de 90% da sua vida útil.

Percebeu-se tardiamente que o paradigma de planeamento do sistema de transportes urbanos deveria ser outro: garantir o acesso às actividades socioeconómicas (trabalho, escola, lazer, compras, entre outros) através do modo mais adequado em função das necessidades do viajante, das distâncias e do motivo da viagem. Se nas distâncias mais longas a motorização dos veículos foi necessária para viabilizar tempos de viagem aceitáveis, para distâncias abaixo de 5 quilómetros os modos activos e os veículos de duas rodas assistidos electricamente são competitivos, atractivos e eficazes para quem queira e possa optar por estes modos.

A mudança para um paradigma de mobilidade urbana mais sustentável passa pela intervenção em três dimensões, complementarmente :

  • Reduzir (avoid) a necessidade de cada viagem ou a respectiva distância, assegurando as actividades socioeconómicas remotamente (por exemplo, teletrabalho) e implementando políticas de mobilidade urbana de proximidade de modo a garantir o acesso fácil (até 15 minutos a pé ou em bicicleta) às actividades quotidianas (nomeadamente, compras, saúde básica, lazer, transportes públicos, etc.); 
  • Mudar (shift) viagens para modos mais eficientes (modos activos e transportes públicos); e 
  • Melhorar (improve) a eficiência energética e ambiental dos veículos motorizados (nomeadamente, através da electrificação dos modos motorizados).

É neste contexto de mudança que a bicicleta emerge como um complemento incontornável do leque de opções modais para as viagens urbanas regulares, isoladamente ou em combinação com os transportes públicos. Se o modo pedonal deveria ser a primeira opção para as viagens de curta distância (até 1,5 quilómetros ) e os transportes públicos para distâncias superiores a 5 quilómetros, a bicicleta deveria garantir a gama de distâncias de 1 a 5 quilómetros sempre que possível.

Por outro lado, um detractor frequente da utilização dos transportes públicos é a falta de acesso fácil aos pontos de entrada na rede (ou seja, paragens, apeadeiros, estações ou cais de embarque), uma vez que os autocarros, comboios, metro ou ferries raramente oferecem uma solução porta-a-porta. Embora estes modos possam cobrir a parte principal de uma viagem, os passageiros precisam primeiro de caminhar ou utilizar outro modo de transporte para alcançar ou partir do (…)

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