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Acidentes com bicicletas. Portugal registou 18 mortes e 35 atropelamentos em ano de pandemia

Entrevista a Rosa Félix para o Observador. Publicado em https://observador.pt/especiais/acidentes-com-bicicletas-portugal-registou-18-mortes-e-35-atropelamentos-em-ano-de-pandemia/ a 3 Julho 2021. Artigo de José Carlos Duarte.

As mortes diminuíram, mas os feridos graves aumentaram em 2020. Uma especialista diz que os números fazem as pessoas ter “medo”. Reduzir a velocidade nas cidades para 30 km/h seria a “vacina”.

Patrizia Paradiso tinha aderido ao ciclismo já depois do início da pandemia. Na última segunda-feira, quando foi abalroada por um Smart na Avenida da Índia, em Lisboa, tornou-se na mais recente vítima mortal de acidentes envolvendo bicicletas em Portugal — em 2020, 18 pessoas morreram, uma delas na capital. No total, no ano que passou, foram reportados 2.225 acidentes com utilizadores de bicicletas, 121 feridos graves (o que representa uma subida face a 2019) e 35 ciclistas foram atropelados.

Foto de Mário Rui André / Lisboa para Pessoas (não incluída no artigo original)

Só em Lisboa foram registados 82 acidentes (dos quais cinco foram atropelamentos) e quatro feridos graves. Já no Porto, onde não se registaram mortes nem feridos graves em 2020, houve 65 acidentes (sete deles foram atropelamentos), segundo dados avançados ao Observador pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR).

Estes números são um dos motivos para que muitas pessoas tenham “medo de andar de bicicleta”, principalmente em Lisboa, defende ao Observador Rosa Félix, investigadora em mobilidade urbana do Instituto Superior Técnico (IST). “É preciso garantir vias para ciclistas, onde andam pessoas a velocidades diferentes e evitar que aconteçam colisões”, sublinha a especialista, que conhecia pessoalmente Patrizia Paradiso, também investigadora no Técnico. Sobre os riscos, Rosa Félix afirma ser necessário ter “alguma experiência” para conseguir circular com segurança na capital. “É necessário comunicar com outros utilizadores de rua, sinalizar as manobras, saber quais é que se devem fazer, assumir o meio da estrada, não encostar à direita…”, detalha.

Lisboa é cada vez mais uma preocupação, dada a dimensão da cidade e o facto de nem sempre ter vias com condições para os ciclistas. Para a MUBi (Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta), o principal problema da capital prende-se com “o excesso de automóveis e velocidades motorizadas praticadas”: “É o principal problema de segurança e conforto para os ciclistas”. Segundo uma “contabilização de velocidade” na Avenida Infante Dom Henrique que a organização realizou, “95% dos carros circulavam acima do limite de velocidade (50 km/h), sendo que metade circulavam acima de 70 km/h”, o que poderá potenciar acidentes, inclusivamente envolvendo bicicletas.

Além disso, a organização considera que continua a não existir em Lisboa “uma estratégia municipal coerente e concertada” para melhorar as condições de segurança dos ciclistas, principalmente no que diz respeito à “alteração do desenho urbano e alteração das interseções extremamente perigosas”.

Em todo o país, o número de acidentes com velocípedes — categoria em que se incluem as bicicletas — aumentou este ano. Entre janeiro e março de 2021 registaram-se 436 acidentes, uma subida face aos 410 no período homólogo de 2020, de acordo com o relatório Sinistralidade 24 da Associação Nacional Segurança Rodoviária (ANSR) de março deste ano. Ainda assim, os dados de 2021, provavelmente, já incluirão acidentes com trotinetas elétricas, que passaram a ser consideradas velocípedes, com a entrada em vigor do decreto-lei nº 102-B/2020, que veio alterar o Código da Estrada.

Os números deste ano parecem inverter a descida que se registou em 2020, ano atípico devido à Covid-19 e em que se registaram 18 vítimas mortais resultantes de acidentes com bicicletas (eram todos homens). Um ano antes esse número tinha sido 26, mas a MUBi defende que, como o “país parou durante uma boa parte do ano”, “os dados da sinistralidade em 2020 nunca serão comparáveis com os de outros anos”.

Nos acidentes, houve também uma descida face a 2019, ano em que se registaram 2.344 acidentes com bicicleta (em 2020 foram 2.225). Destes, 1458 resultaram de colisões, 729 foram despistes e 38 foram atropelamentos — cinco em Lisboa e sete no Porto.

A maioria das mortes e dos feridos graves foram registados nas faixas etárias com mais de 50 anos, apesar de 12 jovens entre os 10 e os 14 anos terem tido ferimentos graves e de uma uma criança com menos de nove ter morrido após ter um acidente com a bicicleta.

De salientar ainda que o número dos feridos graves subiu em Portugal para 121, o terceiro registo mais elevado desde 2010.

A Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) explica ainda que existiam, em 2019, 54 “pontos negros”, locais onde se repetem vários acidentes que envolvem bicicletas, em Portugal. Sem especificar esses pontos, adianta que “a quase totalidade dos locais se situam nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto (85%)”.

vigília “Podia ser eu, podias ser tu. Nem mais 1 vítima” pelo fim dos atropelamentos na cidade marcada para este sábado às 11 horas em vários pontos do país (Lisboa, Porto, Faro, Leiria, Braga, Torres Vedras) e serviu não só para homenagear Patrizia Paradiso, mas também para alertar para problemas relacionados com acidentes com bicicletas, principalmente nas grandes cidades.

O Observador questionou esta quinta-feira e sexta-feira sobre esta e outras matérias a GNR, o Comando Metropolitano do Porto e de Lisboa da PSP, mas não obteve resposta até à hora de publicação deste artigo.

Problemas com ciclovias na capital

Para Rosa Félix, uma “excelente” maneira de contornar muitos destes “pontos negros” passa pela existência de boas ciclovias. Em relação à rede ciclável de Lisboa, a investigadora em mobilidade urbana sinaliza que é “vasta”, ainda que aponte que existem “muitos sítios em que falta construir alguns segmentos e onde a rede está interrompida”.

Como exemplo, Rosa Félix indica o trajeto do Martim Moniz até ao Terreiro do Paço e toda a parte que vai desde o Marquês de Pombal até à marginal (e que passa pela Avenida da Liberdade). É preciso “completar” a rede e torná-la “coesa”, defende.

A especialista considera que desde o Martim Moniz até o Terreiro do Paço faz falta alargar a rede de ciclovia, bem como nas freguesias de Benfica e Penha de França, esta que tem “uma população residente enorme”. “Quem quiser ir desde a Penha de França até ao rio, tem de dar uma volta ao Parque das Nações e fazer essa ligação por conta e risco”, assinala. Além disso, Rosa Félix salienta um “eixo muito usado pelos lisboetas” — a Avenida de Roma — que não tem ciclovia, apesar de ser “plana”, pelo que “seria fácil ligá-la à restante rede”.

▲ São várias as freguesias onde há mobilidade condicionada, segundo a investigadora em mobilidade urbana Rosa Félix

Segundo Rosa Félix, há ainda freguesias sem “nada” que as ligue ao resto da rede de ciclovia e em que a “mobilidade segura está muito condicionada”. Algumas delas são o Beato, Ajuda, Campo de Ourique e Belém (onde Patrizia Paradiso acabou por ser atropelada).

Em resposta ao Observador, a Câmara Municipal de Lisboa frisa que já foram “executados desde 2017 cerca de 50 quilómetros de rede, estando ainda em obra perto de 15 km. Sobre o projeto da Avenida da Índia, a autarquia diz que está “em fase de conclusão”, mas salienta que na zona onde se “deu a colisão fatal” para Patrizia Paradiso a ciclovia “já se encontra executada”.

Ao Observador, a Associação de Vizinhos de Belém denuncia que, no que toca à ciclovia na zona de Belém, “apenas foi implementado o primeiro quilómetro de rede ciclável proposta, nomeadamente na Rua Fernão Mendes Pinto (que é o troço final do Eixo Marginal Ciclável)”.

Para diminuir a sinistralidade envolvendo ciclistas, a MUBi garante que a “vacina” mais eficaz seria a “redução generalizada das velocidades praticadas” para 30 km/h, nomeadamente “em zonas onde veículos motorizados e utilizadores vulneráveis se misturem”, algo que é defendido pelo “Parlamento Europeu, a Organização Mundial de Saúde e as Nações Unidas”, diz a associação.

“O Governo promete zonas urbanas a 30 km/h há anos, a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável (ENMAC) e a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Pedonal (ENMAP) continuam a marcar passo sem orçamento e calendarização”, denuncia a organização, que acusa as autarquias e o Governo de “falta de coragem e responsabilidade política” para executarem os planos.

Em Lisboa, a MUBi diz que a Câmara tem “prometido impor 30 km/h na maior parte das suas ruas”, mas que tem falhado no cumprimento das suas promessas. “Exigimos ao Governo e à CML que assumam a sua responsabilidade política com medidas urgentes”, apela, acrescentando que para a organização, “quando não há coragem política para intervir nas cidades reduzindo as velocidades motorizadas (que aumentaram durante a pandemia), o que acontece não são acidentes, mas sim desastres e mortes previsíveis e evitáveis”.

“As ações de fiscalização acontecem quando o rei faz anos, não é algo sistemático”, afirma, denunciando ainda a cultura tipicamente portuguesa “de fugir aos radares, às operações stop que contribuiu para um sentimento de impunidade e de insegurança”

Para além da velocidade, a organização pede que haja um “especial cuidado na proteção dos mais vulneráveis nas interseções”, o que implica “medidas físicas para a redução das velocidades de aproximação e durante as manobras de mudança de direção”.

A MUBi sublinha ainda que grande parte dos condutores não “cumpre as regras do Código de Estrada”, principalmente no que diz respeito à “ultrapassagem de utilizadores de bicicleta” e culpabiliza as forças de segurança, que “não publicam as estatísticas com o número de autuações por ano dos automobilistas que não cumprem estas regras” e a falta de fiscalização. Sobre este tema, Rosa Félix diz que não existe muito controlo em Portugal sobre os “limites de velocidade, passagem de vermelhos e nível de alcoolismo”. “As ações de fiscalização acontecem quando o rei faz anos, não é algo sistemático”, afirma, denunciando ainda a cultura tipicamente portuguesa “de fugir aos radares e às operações stop, o que contribuiu para um sentimento de impunidade e de insegurança” e que aumenta os acidentes que envolvem bicicletas.